O Globo
De trincheira em trincheira, o sargento vai
enchendo sua caminhonete até entregar o lote recolhido no necrotério mais
próximo
Foram as unhas das mãos de Iryna Filkina, pintadas de esmalte cor de sangue, que permitiram sua rápida identificação. Entre as primeiras imagens da matança de civis praticada por tropas russas em Bucha, logo no início da invasão à Ucrânia, uma delas mostrava um torso intacto, agasalhado, no chão de uma rua já coalhada de cadáveres. Não se veem a cabeça nem os membros inferiores desse torso, apenas um dos braços, também estendido no solo. E, na extremidade do braço, uma mão de pele branquíssima, suja de terra. Os dedos estão ligeiramente fechados e revelam cinco unhas pintadas de escarlate. Ou melhor, quatro: a unha do dedo anular estampa o desenho de um coração preto. Não foi preciso qualquer investigação forense para identificar a quem pertencia aquele torso/braço/mão no solo da primeira cidade atropelada pelos russos: ali jazia o que restava de Iryna, a técnica em ar-condicionado que mantinha a manicure em dia e sempre surpreendia os clientes com alguma audácia no dedo anular. O detalhe do esmalte injetou humanidade àquele corpo sem vida. Hoje é seu rosto sorridente e luminoso que circula pelas redes, em foto fornecida pela família. Vê-se uma Iryna de mão no queixo, unhas impecáveis à mostra, como a apagar a imagem de um ano atrás.
— É na guerra que você se dá conta do valor
de uma vida humana: ela nada vale — explica o ucraniano Oleksiy Yukov à
repórter Katie Livingstone, da Business Insider.
Yukov é voluntário da ONG Tulipa Negra,
cujos integrantes esquadrinham o país em busca dos milhares de cadáveres
esquecidos no conflito. Seus integrantes estão divididos em unidades J9 (a
designação deriva da Convenção de Genebra que trata da recuperação de mortos em
guerra) e desbravam florestas, escavam morrotes, vasculham escombros, percorrem
trincheiras o dia inteiro para recolher as sobras humanas da guerra. Em um ano,
a equipe de Yukov conseguiu resgatar cerca de 800 corpos — fração ínfima de uma
guerra em que nenhum dos dois lados divulga sequer o número aproximado de
baixas. Dados genéricos divulgados por serviços de inteligência britânicos
falam em 100 mil mortos da Ucrânia e quase o dobro do lado russo, mas o cenário
real ainda está longe de ser mapeado. Além da operação de busca e coleta dos
mortos, a Tulipa Negra também tem por missão exumá-los, identificá-los e
localizar algum familiar para poder devolvê-los — um trabalho insano que exige
dedicação extrema, perícia e, sobretudo, desprendimento. Seja ucraniano ou
russo o morto encontrado, ele recebe tratamento equânime por parte da Tulipa
Negra. Toda guerra, por mais suja que seja, tem dessas coisas.
Também o sargento Taras, que trabalha numa
unidade de resgate de corpos das Forças Armadas ucranianas, circula pela guerra
colhendo e entregando cadáveres. Mas não lhe cabe a tarefa de arqueólogo.
Atende chamados das frentes de combate e já encontra a mercadoria humana
acondicionada dentro de sacos de plástico — alguns como que congelados no sono,
outros são apenas fragmentos do que foram. De trincheira em trincheira, Taras
vai enchendo sua caminhonete até entregar o lote recolhido no necrotério mais
próximo. Dali os corpos identificados seguem para entrepostos regionais e de lá
partem para sua derradeira viagem — para casa, se casa ainda existir, se algum
parente ainda estiver vivo, se a guerra permitir. Para cada dia a mais de
conflito, levas e mais levas de mortos.
— Se a Rússia cessar a
“operação militar especial” (eufemismo oficial de Moscou para a guerra contra a
Ucrânia) sem conquistar a vitória, a Rússia desaparecerá, será estraçalhada em
pedaços — prenunciou nesta semana o eterno número dois do regime, Dmitry
Medvedev.
A solução para o fim do conflito?
— A guerra acaba se os Estados Unidos
cessarem de suprir armas ao regime de Kiev.
Quase à mesma hora, na Polônia, o
presidente dos Estados Unidos, Joe Biden,
falava outra língua.
— Se a Ucrânia deixar de se defender contra
a Rússia, seria o fim da Ucrânia. A guerra acaba se a Rússia parar de invadir.
Pouco mudou em um ano, mas tudo se agravou.
Dos 141 países (de um total de 193) que
condenaram a invasão russa na Assembleia Geral da ONU em 2022, praticamente os
mesmos reiteraram suas posições em votação desta semana. Os 33 que se aliaram
aos EUA nas sanções econômicas contra a Rússia são os mesmos que fornecem ajuda
militar à Ucrânia. O que se agravou foi o número de mortos, de sobreviventes
mutilados, de órfãos e crianças ucranianas roubadas pelo invasor. Toda uma
geração de idosos que conheceu a brutalidade nazista e soviética busca em vão
um sentido para mais esta matança.
O que se agravou foi o perigo de mais
guerra. Ou, como declarou o embaixador do Canadá junto à ONU, Bob Rae, a guerra
só acabará quando a Rússia decidir que suas tropas devem ficar na Rússia, e não
na Ucrânia. Nada à vista, neste horizonte.
Muita guerra ainda pela frente antes que um comitê de paz possa ter qualquer chance mínima de atuar, infelizmente.
ResponderExcluirLavrov e Medvedev são estrategistas poderosíssimos a serviço de Putin.
Dorrit é a minha leitura obrigatória de todo domingo. É uma das poucas que junta ludicidade e sagacidade no mesmo texto, um dom sem igual. No entanto, eu fiquei chateado com a sua leitura sobre a suposta brutalidade sovietica num contexto de guerra contra os nazistas. Nao existe brutalidade em matar nazistas. Matar nazistas é missão em qualquer tempo. Aliás, encarar um tarantino que fuzilou hitler como brutalidade e na como gozo seria errado para qualquer mortal. Por isso minha contestação aqui.
ResponderExcluirComo existe tanta imbecilidade no mundo, pobre coitado!
ExcluirÉ verdade... Tem gente que defende por aí a liberdade para criação de um partido nazista como se palavras e ideias fossem meras coisas abstratas.
ResponderExcluirAve Maria!
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