sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Flávia Oliveira - O carnaval voltou

O Globo

Festa de 2023 será de retomada, reconexão, reencontro

Não são segredos minha paixão pelo carnaval das escolas de samba, meu respeito pelos profissionais que o realizam, meu amor pela cidade que inventou e abriga a festa, o Rio de Janeiro. A fábrica de sonhos que é a Cidade do Samba, o fervo nas quadras e nas ruas que abrigam ensaios na temporada de preparação para o espetáculo — bem distribuídas na Região Metropolitana a ponto de escancararem a viabilidade de planos de desenvolvimento local quase sempre desprezados pelo poder público — me comovem. No domingo passado, me peguei emocionada também com as imagens de foliões paramentados às 6h da manhã para a maratona chamada Cordão do Boitatá.

No álbum dos sambas do desfile fora de época do Grupo Especial, no feriadão de Tiradentes, em abril de 2022, Neguinho da Beija-Flor anunciava no fim da faixa que renderia à agremiação de Nilópolis o vice-campeonato: “Alô, Brasil. Alô, mundo. O carnaval voltou”. Retornara o espetáculo na Marquês de Sapucaí — e também o do sambódromo do Anhembi, em São Paulo. O carnaval, propriamente, no Rio — e Brasil afora — está de volta agora, neste 2023 de pandemia não revogada, mas sob relativo controle. Salve a vacina. Viva o SUS.

O carnaval é a festa mais importante do Brasil. Importante a ponto de nos definir como nação, como sugeriu o historiador Luiz Antonio Simas num post recente em rede social. “O Brasil não inventou o carnaval”, escreveu. “Mas o povo do Brasil se aconchegou de tal forma à folia, que ocorreu o inverso: foi o carnaval que inventou um país possível e original, às margens e nas frestas do projeto de horror que nos constituiu.”

São as delícias dos festejos de Momo que me aquecem o coração neste 2023 de retomada, reconexão, reencontro.

Como não se emocionar com o povo de Olinda celebrando o retorno do Homem da Meia-Noite? O calunga mais famoso do carnaval pernambucano só deixou de atravessar as ladeiras históricas por duas vezes, o biênio 2021-22, em 91 anos de existência. Ninguém em sã consciência pode ser indiferente a Daniela Mercury deixando o palco do Mercado Iaô (Ribeira), que dividia com Margareth Menezes e as Ganhadeiras de Itapuã num domingo de lua cheia, para ensaiar com os Filhos de Gandhy no Pelourinho. Eu vi.

O que dizer de o Cortejo Afro homenagear Logunedé, o orixá filho de Oxum e Oxóssi no carnaval da volta; do Olodum aquecendo os tambores? Não há meio de ser racional com o Ilê Aye retomando a Noite da Beleza Negra para, depois de um par de anos sem disputa, fazer de Dalila Santos de Oliveira sua nova Deusa do Ébano.

Numa dezena de dias de férias em Salvador, no início do mês, testemunhei o efeito viral da “Zona de perigo”, ora tornado hit do carnaval 2023. Léo Santana apresentou canção e coreografia num pré-carnaval improvisado na véspera da celebração a Iemanjá, o 2 de Fevereiro, na casa de Regina Casé e Estevão Ciavatta. Vibrei com meu neto, Martin, em pleno café da manhã no hotel puxando o coro à moda da hoje titular de um ressuscitado Ministério da Cultura: “Eu falei faraóóó”.

Uma manifestação cultural que alcança humanos de 8 meses a 80 anos — e contando — precisa ser reverenciada. São algo inacreditáveis as imagens da massa pipocando ao som do BaianaSystem no encerramento do Furdunço, festa que toma as ruas da capital baiana no domingo anterior ao carnaval. Na Sapucaí, no fim de semana pré-desfiles, as baianas de branco, sob chuva torrencial, retornaram ao ritual de lavagem da avenida. Oxalá explica.

No dia derradeiro dos ensaios técnicos, Grande Rio e Beija-Flor, campeã e vice do carnaval incompleto de 2022, sambaram como se amanhã não houvesse — e eu com elas. Vai ser lindo revê-las no domingo e segunda, homenageando, respectivamente, Zeca Pagodinho e as revoluções populares, bem como suas denominadas coirmãs.

A Mangueira pisará na avenida sob o comando de sua primeira presidente negra eleita, Guanayra Firmino, para apresentar a africanidade baiana. A Portela celebrará o próprio centenário, que é também da festa como conhecemos. Dá orgulho ver a renovação da festa pela safra de jovens carnavalescos e pesquisadores que concebem o espetáculo, sob perspectiva afrocentrada, antirracista, de respeito a tradições religiosas, regionais, culturais. Dá-lhe valorização da negritude, do Nordeste, dos direitos humanos, da riqueza ambiental.

O carnaval é rico também economicamente. Neste ano, a Riotur estima que 5 milhões de pessoas circularão pela cidade nos dias de folia. Na publicação Carnaval de Dados, a Prefeitura do Rio estima que a festa movimentará R$ 4,5 bilhões, 12,5% a mais que em 2020. A arrecadação com ISS nas atividades de turismo deverá ultrapassar R$ 23 milhões, dez vezes a subvenção destinada às escolas do Grupo Especial. O mês do carnaval é o de maior receita tributária do tipo.

É duro pensar que a festa das delícias tem suas dores. Muitas. Dois anos de pandemia e grave crise na cadeia produtiva do carnaval não serviram para poder público e organizadores planejarem o fim das mazelas, a diminuição das assimetrias. O carnaval voltou também com a Sapucaí inundada, se chove forte; com agremiações do Rio e de São Paulo tendo o ano de trabalho destruído pela falta de espaço adequado para abrigá-las das intempéries. Os supercamarotes do sambódromo carioca continuarão perturbando o samba com o bate-estaca da música eletrônica. As arquibancadas ainda se ressentirão da ausência do povo que ama escola de samba, mas não pode pagar pelos ingressos.

As rainhas negras das baterias, dançarinas de primeira, seguirão invisibilizadas por celebridades de cintura dura, como tem denunciado a eterna Quitéria Chagas, imperiana de fé. Mariene de Castro não cantará no carnaval de Salvador, exclusão imperdoável. Assim se passaram dois anos. Parafraseando o maestro Tom Jobim, tudo continua lindo, mas uma m**da; tudo uma m**da, mas lindo.

 

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