O Estado de S. Paulo
Este ano, ao menos uma das vagas a serem
preenchidas deve ir para um representante do povo excluído da casta jurídica e
que se constitui em sua principal vítima
Se analisarmos o funcionamento dos Três
Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, que regem a sociedade brasileira,
veremos facilmente que foram construídos, com precisão de alfaiate, para manter
80% da sociedade – em sua esmagadora maioria mestiça, negra e pobre – alijada,
na prática da vida real, de qualquer chance de ascensão social e vida digna.
Este esquema é garantido no Parlamento pela fragmentação de interesses, pelo peso do dinheiro nas eleições e pelo poder de mando local das elites rurais. No Judiciário, o esquema elitista se baseia na criação de uma casta jurídica com altos salários, apartada da sociedade, uma espécie de nobreza de Estado, como os mandarins chineses, quase toda branca e, se possível, com sobrenome europeu. Nas unidades federativas, a mesma casta jurídica se reproduz graças a linhagens centenárias, que passam de pai para filho, como um privilégio de sangue. No Executivo, finalmente, o esquema elitista logrou se reproduzir graças à construção de uma imprensa privada e venal, de propriedade particular da mesma elite que parasita a sociedade, que é responsável pela conveniente criminalização de qualquer liderança popular – pensemos em Vargas, Jango, Lula e Dilma – que o sufrágio universal, o verdadeiro calcanhar de Aquiles da elite brasileira, leve ao poder de Estado. O pacto elite/imprensa cria, na prática, a “cultura de golpes de Estado”, que vige no Brasil já há cem anos, pelo uso seletivo, ou simplesmente mafioso, do falso moralismo do combate à corrupção.
É apenas a partir deste pano de fundo, que
espelha um racismo de classe e de raça seculares, que a renovação do Supremo
Tribunal Federal (STF) este ano ganha importância. Seria um dado de alta
relevância simbólica e política ter, no Supremo Tribunal, um representante
precisamente do povo pobre e negro, secularmente não apenas excluído da casta
jurídica, mas também a sua vítima preferencial. Seria um sinal de que é
desejável e possível mudar.
É verdade que, num país onde impera até
hoje a lei social do “embranquecimento”, a qual exige do negro, para ascender
individualmente, o compromisso com a defesa dos valores do opressor,
especialmente da riqueza, mas também do menosprezo a tudo o que é popular, o
simples fato de ser negro não basta. Infelizmente, boa parte dos negros que
ascendem internaliza, quase sempre inconscientemente, os mesmos valores
elitistas que reproduzem o racismo sob máscaras reluzentes, como, por exemplo,
do falso moralismo do combate à corrupção, cuja real função é precisamente
criminalizar a soberania popular e o voto da maioria de negros e mestiços e
perseguir seletivamente seus representantes. O Brasil, afinal, aprendeu a
mascarar seu racismo como se fosse defesa da moralidade pública. Essa foi a
verdadeira modernização brasileira do seu passado escravocrata.
De resto, são os negros as principais
vítimas de um sistema de (in)justiça que, também secularmente, atribui como
crime simplesmente aquilo que o negro faz: sua música, sua dança, sua
religiosidade e seus hábitos cotidianos. Enquanto os grandes especuladores
roubam o futuro de milhões e são exaltados como grandes negociantes, são sempre
os negros condenados a penas de 10 anos ou 15 anos por crimes leves, ou mortos
pela polícia em execução sumária. 40% das mulheres e 20% dos homens que
superlotam as cadeias brasileiras estão lá por crimes relativos à maconha, uma
droga cada vez mais aceita e, inclusive, receitada em muitos lugares. Também a
demonização da maconha, droga recreativa dos escravos, é produto do racismo
secular de considerar crime tudo o que o negro faz. É este sistema perverso que
precisa mudar.
Temos, sem dúvida, grandes juristas
comprometidos com a Constituição cidadã, como Cristiano Zanin, Rubens Casara,
Pedro Serrano ou Luis Carlos Valois, para citar apenas alguns. Qualquer deles
honraria o Supremo com sua presença. Mas acredito que ao menos uma das duas
vagas a serem preenchidas este ano deva ir para um representante do povo
secularmente excluído da casta jurídica e que se constitui, inclusive, em sua
principal vítima. Temos, felizmente, também grandes nomes aqui. E o primeiro
que vem à minha cabeça é o do juiz André Nicolitt. Não apenas por ser negro,
mas por ser um filho do povo pobre que jamais esqueceu suas origens, como prova
toda uma história de vida dedicada às causas populares e à defesa da
Constituição.
Se é verdade que um negro “embranquecido”,
que partilha dos valores do opressor, num cargo de poder é mais um desserviço
que uma ajuda à causa popular, um negro consciente e comprometido com as lutas
populares é uma ajuda incomensurável, posto que exemplo a ser seguido por
muitos. A necessária mudança de um paradigma racista que se mantém, no “racismo
cordial brasileiro”, nas suas máscaras – a corrupção como atributo popular e a
criminalização do negro em geral – para continuar vivo fingindo que morreu
exige, além de esclarecimento da esfera pública, atos simbólicos de grande
repercussão. E “desembranquecer” a casta jurídica elitista é uma necessidade
urgente.
*Escritor e sociólogo
Ia bem até mostrar a que veio: tentar 'manobrar' uma indicação.
ResponderExcluirFedeu. Escureceu.
Será que o juiz sugerido neste artigo é tão complacente com a corrupção e as drogas quanto o autor do texto? Jessé é um escritor bastante original e corajoso, mas não gosto da sua despreocupação com a corrupção e as drogas.
ResponderExcluirO anonikl acima dwve ser uma anta, no minimo. Jesse nao é contra o combate a corrupcao anta de teta, é contra o falso moralismo que fqzrm uso desse subterfugio da corrupcao.
ResponderExcluirO ingênuo anônimo acima está bem feliz com a retórica do Jessé que minimiza de todas as formas as gigantescas corrupções petistas. Ambos passam os paninhos juntos?
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