Folha de S. Paulo
Imbróglio das joias das Arábias borra
imagem de rude simplicidade de Bolsonaro
Segundo um aforismo da tradição jeje-nagô,
"quem usa roupa branca não se senta na graxa" (alaosála ki ilo ioko
si-elépo, no original iorubá). Sentido prático: não se pode tocar em sujeira
sem ser descoberto. Bem provável, assim, que o imbróglio das joias das Arábias
venha borrar a pretensa imagem de rude simplicidade do ex-presidente, vendida
aos incautos por redes sociais, políticos de baixa extração e aproveitadores.
O fascínio popularesco por essa imagem, responsável também em outras regiões do mundo pela identificação com personalidades toscas, é análogo ao exercido pelo objeto antigo. Numa análise datada dos anos 70, Jean Baudrillard, crítico dos signos culturais, opõe a funcionalidade dos objetos modernos à natureza mitológica do antigo (em "O Sistema dos Objetos"). Para ele, o objeto arcaico decorativo é puramente mitológico em sua referência ao passado. Ou seja, não tem nenhuma incidência prática, sua única função é significar os índices culturais de uma vida anterior. Dele não se exige utilidade, apenas autenticidade.
Na esfera política, essa argumentação deixa
perceber que a imaginação coletiva em torno da antiguidade é comparável àquela
que escolhe um populista autoritário como "mito" ou
"autêntico", portanto, como um ser-fundado-em-si-mesmo e não num
sistema republicano, tido como corrupto. Os exemplos multiplicam-se. No Equador
dos anos 90, autêntico era Abdalá Bucaram, eleito presidente, embora conhecido
como "El Loco". Sofreu impeachment: "incapacidade mental".
Entre nós, a "autenticidade" fake
também confluiu para um excêntrico, isto é, para um "objeto"
parlamentar tão marginal no sistema republicano quanto um badulaque antigo na
funcionalidade dos utensílios. Entenda-se: um ser humano civicamente
disfuncional, avesso à legitimidade da política e dos ritos democráticos.
O anacronismo progride no imaginário
precisamente por sua disponível inutilidade: o signo vazio atrai. Igualmente,
pela suposição de que o homem do povo sempre se reconheceu num tipo de líder
que come pão com leite condensado e expele farofa pelo canto da boca, entre uma
e outra obscenidades, mas supostamente incorrupto.
O enredo religioso torna essa identificação
mais complexa. Na superfície, boiam o desespero e a nostalgia ardente de um
culto também mais antigo e participativo: encontrar Jesus, falar com Deus
quando quiser, e o líder poderá mesmo carecer de virtudes, desde que esteja na
brancura da fé. A fantasia dura alguns carnavais. Súbito, porém,
"diamantes rolam no chão" (Chico Buarque, "Bancarrota
Blues"): em ordem unida, a liderança sentou-se de branco na graxa. O
condensado não é mais de leite, mas de propinas. Bye-bye, mito.
Delícia de texto!
ResponderExcluirTchau, Bolsoignaro!
A autenticidade de Jair Bolsonaro: autêntico criminoso, miliciano em tempo integral.
ResponderExcluirExcelente texto. O autor foi muito elegante nas definições:”rude simplicidade”, “civicamente disfuncional”mas com certeza tem muitas outras bem menos elegantes.
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