quinta-feira, 6 de abril de 2023

Maria Hermínia Tavares* - Direitos difíceis

Folha de S. Paulo

Não se combate pobreza e desigualdade sem entender que ambas são vividas no plural

Taxativo, Rafael Correa, que governou o Equador de 2007 a 2017, sustentou em entrevista a esta Folha, publicada na segunda-feira passada (3), que as esquerdas latino-americanas erram ao colocar temas identitários e morais no centro de sua pauta, porque tiraria o foco do essencial –a luta contra a pobreza e a desigualdade. A ideia não é nova. Na realidade, Correa ecoa outras tantas, compartilhadas por alguns progressistas do Norte desenvolvido.

Os críticos sustentam que a ênfase em demandas igualitárias de grupos específicos (mulheres, LGBTQUIA+, vítimas de discriminação por sua cor ou nacionalidade) facilita a mobilização eleitoral dos trabalhadores mais pobres —e brancos— por lideranças populistas de direita. Essa é, por exemplo, a tese do livro "O Progressista de Ontem e de Amanhã" (Companhia das Letras, 2018) do professor Mark Lilla, da Universidade Columbia, ele próprio progressista e eleitor de carteirinha do Partido Democrata.

De volta a Correa.

Tendo transitado com desenvoltura do marxismo para o populismo, o ex-presidente equatoriano erra no diagnóstico e no remédio que prescreve. É falso que a defesa de direitos daqueles grupos seja central para os partidos de esquerda na região —exceto os parceiros do governo de coalizão no Chile. Ao contrário, agremiações de esquerda resistem a fazê-lo, como no Brasil, onde o tema se mexe aos trancos e barrancos.

É que não parece possível combater a sério a pobreza e a desigualdade sem entender que ambas são vividas no plural. Ou seja, não resultam apenas da distribuição iníqua de renda e patrimônio —e muito menos se resolvem tão só nesse plano. Afinal, beira a platitude afirmar que segmentos alvo das políticas ditas identitárias estão em geral sobrerrepresentados nas camadas mais pobres da população e sofrem discriminações que dificultam, quando não inibem, o progresso de seus membros.

No fundo, tais políticas nada mais são do que tentativas de dar a todas as pessoas tratamento igual e o devido respeito —dois princípios alojados no cerne da noção de cidadania.

Por outro lado, não há dúvida de que são direitos mais "difíceis" de reconhecer, pois tendem a colidir com visões de mundo, valores privados, sentimentos íntimos. Eis por que são tão facilmente caricaturados pela extrema direita civil e religiosa, para as quais sua existência ameaçaria o modo de vida do cidadão comum.

Desse modo, essa agenda de direitos desafia a capacidade dos progressistas que a abraçam de associá-la à pauta tradicional da equidade econômica —e de imaginar como falar dela com os que lhe são refratários.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário