Folha de S. Paulo
Não se combate pobreza e desigualdade sem
entender que ambas são vividas no plural
Taxativo, Rafael Correa, que governou o
Equador de 2007 a 2017, sustentou em entrevista
a esta Folha,
publicada na segunda-feira passada (3), que as esquerdas latino-americanas
erram ao colocar temas identitários e morais no centro de sua pauta, porque
tiraria o foco do essencial –a luta contra a pobreza e a desigualdade. A ideia
não é nova. Na realidade, Correa ecoa outras tantas, compartilhadas por alguns
progressistas do Norte desenvolvido.
Os críticos sustentam que a ênfase em demandas igualitárias de grupos específicos (mulheres, LGBTQUIA+, vítimas de discriminação por sua cor ou nacionalidade) facilita a mobilização eleitoral dos trabalhadores mais pobres —e brancos— por lideranças populistas de direita. Essa é, por exemplo, a tese do livro "O Progressista de Ontem e de Amanhã" (Companhia das Letras, 2018) do professor Mark Lilla, da Universidade Columbia, ele próprio progressista e eleitor de carteirinha do Partido Democrata.
De volta a Correa.
Tendo transitado com desenvoltura do
marxismo para o populismo, o ex-presidente equatoriano erra no diagnóstico e no
remédio que prescreve. É falso que a defesa de direitos daqueles grupos seja
central para os partidos de esquerda na região —exceto os parceiros do governo
de coalizão no Chile. Ao contrário, agremiações de esquerda resistem a fazê-lo,
como no Brasil, onde o tema se mexe aos trancos e barrancos.
É que não parece possível combater a sério
a pobreza e a desigualdade sem entender que ambas são vividas no plural. Ou
seja, não resultam apenas da distribuição iníqua de renda e patrimônio —e muito
menos se resolvem tão só nesse plano. Afinal, beira a platitude afirmar que segmentos
alvo das políticas ditas identitárias estão em geral sobrerrepresentados nas
camadas mais pobres da população e sofrem discriminações que dificultam, quando
não inibem, o progresso de seus membros.
No fundo, tais políticas nada mais são do
que tentativas de dar a todas as pessoas tratamento igual e o devido respeito
—dois princípios alojados no cerne da noção de cidadania.
Por outro lado, não há dúvida de que são
direitos mais "difíceis" de reconhecer, pois tendem a colidir com
visões de mundo, valores privados, sentimentos íntimos. Eis por que são tão
facilmente caricaturados pela extrema direita civil e religiosa, para as quais
sua existência ameaçaria o modo de vida do cidadão comum.
Desse modo, essa agenda de direitos desafia
a capacidade dos progressistas que
a abraçam de associá-la à pauta tradicional da equidade econômica —e de
imaginar como falar dela com os que lhe são refratários.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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