quarta-feira, 5 de abril de 2023

Zeina Latif - Uma novela sem fim

O Globo

A discussão não terminará com a aprovação do novo arcabouço fiscal no Congresso, pois não será fácil sua implementação

Estamos novamente às voltas com a discussão sobre desenho de regra fiscal. Algum ajuste na regra atual seria inevitável, mas o governo, por uma escolha política, pode estar complicando a situação ao propor o novo arcabouço fiscal, por conta das condições necessárias para seu funcionamento pleno, além de efeitos secundários indesejados.

De quebra, com o histórico do país de desrespeito frequente à legislação na área fiscal, a nova regra já nasce com um déficit de credibilidade.

O governo anterior deixou uma herança difícil. Primeiramente, a proposta orçamentária deste ano não era exequível, pois algumas despesas criadas não foram incluídas no orçamento – um problema ainda não sanado – e houve compressão de gastos essenciais.

Ainda que o teto de gastos explique a contenção irrealista de despesas, ele não foi o culpado por esse quadro, mas sim a dificuldade do país de fazer reformas para frear o crescimento de despesas obrigatórias.

Passada a reforma da Previdência, e em meio às surpresas com a arrecadação tributária nos últimos anos, agendas fiscais estruturais foram deixadas de lado, o que levou à sequência de emendas à Constituição para furar o teto.

Além disso, a regra foi mal administrada. Em 2020, abusou-se do uso da cláusula de escape –permite elevar gastos fora do teto em situações excepcionais –, com uma expansão fiscal muito superior à de países emergentes. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se um prazo para o fim das medidas de socorro, como se a pandemia tivesse data para acabar.

Apesar de enfraquecido, teria sido mais sábio manter o teto, mas com ajustes – em parte feitos na PEC da Transição. Uma boa contribuição seria reforçá-lo do ponto de vista institucional, de modo que o Executivo pudesse contar com a contribuição de um órgão independente responsável por recomendar revisões de políticas públicas ineficientes e o bom uso da cláusula de escape.

O resultado foi o furo do teto, no início de 2021, com a PEC Emergencial, que acabou abrindo precedente para o aumento de despesas “jabutis”, não associadas à pandemia, e para mais furos posteriores (PECs dos Precatórios e Kamikaze). Faltou cuidado no uso da flexibilidade prevista na regra.

Até lá, o Ministério do Planejamento poderia cumprir esse papel.

No entanto, o discurso de demonização do teto dificultou sua manutenção. Agora, energia é dispendida para desenhar a nova regra, que ainda carece de detalhes sobre seu funcionamento. O envio ao Congresso e sua tramitação talvez não sejam para já.

Não havia expectativa de uma regra ambiciosa, pois se trata de um governo com muitos compromissos de aumento de gastos. O problema é que o arcabouço proposto não é suficientemente consistente, pois há um compromisso com o superávit fiscal (primário) que dependerá de forte, e improvável, aumento da carga tributária.

E a contenção da alta da dívida pública (como proporção do PIB) dependerá também de hipóteses muito otimistas, principalmente de crescimento do PIB (nominal).

Diante das dificuldades, o compromisso de superávit primário tende a ser flexibilizado adiante, prejudicando a almejada previsibilidade de um regime fiscal.

A novela não terminará, portanto, com a aprovação do arcabouço fiscal no Congresso, pois não será fácil sua implementação, dificultando a queda da inflação e dos juros.

A intenção de eliminar benefícios tributários indevidos é meritória, mas encontrará resistência no Congresso. O ideal seria enfrentar o patrimonialismo também do lado das despesas. Ajustes incrementais, de todos os lados, teriam maior viabilidade política – o esforço de muitos, e em doses palatáveis.

Há outros efeitos colaterais. A incerteza quanto ao tamanho futuro da carga tributária poderá adiar decisões de investimento das empresas.

Poderá também atrapalhar as negociações em torno da reforma de criação do IVA. A pressão de setores para alíquotas diferenciadas tende a crescer, podendo ainda adiar o cronograma de votação. Os caminhos das duas reformas vão se cruzar e isso não é bom.

Outra possível consequência será o maior incentivo para o governo recorrer indevidamente a estímulos artificiais à economia, para elevar a arrecadação. Um exemplo seria o aumento do crédito de bancos públicos. Foram, porém, experiências do passado que fracassaram e desarrumaram a economia.

Aguardemos os próximos capítulos.

 

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