O Globo
Nova onda rosa era apenas expressão de
desejo de alguns nostálgicos
Nos últimos tempos, muitos tiveram a
expectativa de uma nova onda rosa na América Latina. As vitórias de Alberto
Fernández na Argentina, Gabriel Boric no Chile, Gustavo Petro na Colômbia e
Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil entusiasmaram setores que, precipitadamente,
comemoraram o fim da onda direitista na região. O recente resultado da eleição
para formar o novo Conselho Constitucional no Chile, somado ao fortalecimento
da candidatura de Javier Milei na campanha presidencial na Argentina e ao bom
desempenho do candidato de extrema direita Paraguayo Cubas no Paraguai —
lá considerado um anarquista —, confirmou que a nova onda rosa era apenas
expressão de desejo de alguns nostálgicos.
A América Latina vive um novo ciclo, mas ele nada tem a ver com experiências do passado recente. Em tempos de auge das redes sociais — que na região operam quase sem restrições —, a política tradicional está desconectada da sociedade e de suas demandas prioritárias, em momentos de deterioração da economia. Com governos que não entregam bons resultados, a extrema direita tem um terreno fértil para crescer. Com propostas em muitos casos delirantes, seus representantes — sempre habilidosos usuários das redes — estão conectados com uma rede global de extrema direita e aplicam ao pé da letra um manual de operações que inclui questionamento ao sistema eleitoral e aos partidos no poder. O discurso de Milei contra a “casta política” virou mantra entre setores de classe baixa, média e alta na Argentina.
No Chile, diz um alto representante do
governo de Boric, os que votaram no Partido Republicano de José Antonio Kast
são cidadãos enfurecidas com a política tradicional e com um governo
enfraquecido. O que os enfurece? Essencialmente, o aumento da violência, os
problemas econômicos e o crescimento da imigração de vizinhos latino-americanos
— sobretudo venezuelanos. Existem claras semelhanças com elementos que
fortalecem a extrema direita na Europa e nos Estados Unidos.
Uma das figuras que se destacaram na
eleição chilena foi Luis Silva Irarrázaval, de 45 anos, que concentrou sua
campanha nas redes e, numa estratégia para facilitar a penetração de suas
ideias entre os setores populares, se apresentou apenas como “profe Silva”.
Embora não tenha longa carreira como professor — passou por algumas
universidades de Santiago —, buscou mostrar-se próximo do dia a dia das classes
mais baixas. O sobrenome Irarrázaval, comum entre famílias da aristocracia
chilena, saiu de cena. Candidato mais votado na Região Metropolitana da
capital, é fiel militante do Opus Dei, integra grupos contrários a métodos
anticoncepcionais e educação sexual integral, que pregam a criminalização da
diversidade sexual de gênero. Silva representa o que existe de mais retrógrado
na sociedade.
Depois da onda de protestos de 2019, da
aprovação de um primeiro plebiscito para que o país tenha uma nova
Constituição, da eleição do esquerdista — cada dia mais moderado — Boric como
presidente, da derrota do plebiscito sobre a primeira proposta de reforma
constitucional, o maior grupo dentro do Conselho que elaborará a segunda
proposta de Carta será ultraconservador. Se a ideia era uma guinada de 180
graus em relação ao texto herdado da ditadura de Augusto Pinochet, hoje o Chile
vive um momento de enormes desafios para a centro-esquerda e a esquerda.
Na vizinha Argentina, todas as pesquisas
sugerem que Milei será o candidato mais votado nas Primárias Abertas
Simultâneas e Obrigatórias (Paso), de 13 de agosto. Embora seu partido não
tenha conseguido bons resultados em eleições regionais recentes, o fundador do
partido Avança Liberdade está firme na liderança, com propostas como dolarizar
a economia, permitir a venda de órgãos e revisar o sistema de educação pública.
A extrema direita avança diante de uma
esquerda que não consegue estabelecer a mesma conexão com a sociedade. No
segundo semestre do ano passado, o presidente Lula pediu a representantes do
governo argentino informações sobre Milei. Em campanha eleitoral, ele queria
entender o fenômeno que, naquele momento, ninguém acreditava ter chance nas
eleições presidenciais de 2023. Numa dinâmica vertiginosa, a economia argentina
degringolou, e Milei foi o único que, até agora, capitalizou o fracasso do
governo peronista.
Não houve nova onda rosa, e o que vem por aí é tão incerto como assustador.
Assustador mesmo!
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