sexta-feira, 19 de maio de 2023

Maria Cristina Fernandes - Barradas no baile da política

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

No país com uma das piores desigualdades de gênero na política, levantamento mostra que a maior parte das prefeitas são do NE, com nível superior e do serviço público. Um quarto delas são solteiras

Em outubro de 2020, Francisca das Chagas Costa da Silva, registrada na Justiça Eleitoral como Tica Costureira, candidatou-se a vereadora pelo PSDB de Mossoró (RN), mas não gastou um tostão, não divulgou sua candidatura e não obteve sequer seu próprio voto.

O Tribunal Regional Eleitoral potiguar considerou que Francisca havia desistido da candidatura e rejeitou a ação de investigação judicial eleitoral, mas o recurso à decisão acabaria por ser acolhido pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Na semana passada, o TSE reconheceu fraude à cota de gênero, anulou os votos recebidos pelo PSDB e cassou o mandato da vereadora Larissa Rosado, eleita pela legenda e hoje no União Brasil. Era a única vereadora da Câmara de Mossoró.

Naquela cidade, 95 anos atrás, a professora Celina Guimarães Viana requisitou e obteve o direito de se tornar a primeira eleitora do país, quatro anos antes da legalização do voto feminino pelo Código Eleitoral Brasileiro.

Naquele mesmo ano, Alzira Soriano, viúva de um promotor de justiça morto pela gripe espanhola e mãe de três filhas, elegeu-se à Prefeitura de Lajes, a 150 quilômetros de Mossoró. Foi a primeira prefeita brasileira, eleita seis anos antes de a médica paulista Carlota Pereira de Queirós ser a primeira mulher a chegar à Câmara dos Deputados.

Histórias como a de Tica Costureira estão todos os dias na pauta do TSE, ainda que poucas ilustrem tão bem o quanto a representação política do maior contingente eleitoral do país, o das mulheres, anda de lado e, muitas vezes, para trás.

As fraudes à cota de gênero, que obrigam os partidos a lançar 30% de candidaturas femininas - e repassar recursos correspondentes - somadas àquelas de raça, além das infrações no uso dos fundos eleitoral e partidário, tem sido sucessivamente perdoadas em anistias votadas pelo Congresso. Esta semana a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, por 45 votos a 10, uma anistia ampla geral e irrestrita.

Se cinco deputadas - Gleisi Hoffmann (PT-PR), Marília Arraes (SD-PE), Delegada Katarina (PSD-SE) e Julia Zanatta (PL-SC) - votaram a favor da anistia não surpreende que o conjunto do colégio eleitoral das mulheres brasileiras resistam a escolher candidatas para representá-las.

Sem meios de fazer cumprir - e punir - as infrações a uma legislação destinada a aproximar a representação feminina de sua participação no colégio eleitoral do país, com 52% dos votos, o Brasil exibe o pior indicador de igualdade de gênero da América Latina. A região tem o México como exemplo mundial, com a representação parlamentar dividida meio a meio entre homens e mulheres.

Não parece coincidência que o direito ao aborto tenha avançado em todo o continente e permaneça um tabu no Brasil. A União Inter-Parlamentar, das Nações Unidas, atualizou, em abril deste ano, os dados referentes a 193 países. O Brasil está em 131º lugar. Esta colocação traduz a ocupação de 17,5% dos assentos da Câmara e 18,5% do Senado por mulheres.

É bem verdade que o Brasil subiu duas posições em relação à legislatura passada, quando estava em 133º lugar, com 15% dos assentos na Câmara e 20% no Senado. Uma das razões para esta subida, porém, é a ausência da Venezuela no ranking deste ano, por inexistência de dados. Quatro anos antes, o país estava melhor situado que o Brasil.

Os indicadores do Brasil o colocam abaixo da média de cinco regiões do planeta tabulados pela ONU: Americas, Europa, Ásia, Pacífico e África Subsaariana. O país só supera a média da região com mais desigualdade de gênero parlamentar do levantamento, a do Oriente Médio/Norte da África.

Se a representação das mulheres no Congresso Nacional é sofrível, no Executivo é ainda pior. A chegada de uma mulher à Presidência, em 2010, não alavancou a representatividade feminina, como aconteceu, por exemplo, com a chegada de Jacinda Ardern ao cargo de primeira-ministra da Nova Zelândia. Naquele país, a participação das mulheres no parlamento, que já era alta (40%), chegou à paridade.

É bem verdade que foi no ano da primeira eleição de Dilma Rousseff que a cota de 30% de mulheres candidatas nas eleições proporcionais, estabelecida por lei do ano anterior, entrou em vigor. Sete anos depois, o Supremo confirmou a obrigatoriedade da distribuição das verbas de campanha proporcionalmente ao número de candidaturas de cada sexo.

Como a medida não foi capaz de evitar a profusão de candidaturas-laranja, uma nova emenda constitucional, aprovada em 2021, trouxe outro incentivo. O texto prevê que o voto dado a mulheres e negros seja contado em dobro para fins de distribuição dos fundos eleitoral e partidário.

Nem esta medida proporcionou um avanço expressivo da representatividade feminina. As cotas não se estendem à disputa pelo Executivo, mas, de alguma forma, explicam por que, naquele ano, duas senadoras foram lançadas à Presidência da República, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União), ambas do Mato Grosso do Sul. Boa parte do dinheiro de suas campanhas saiu dos recursos reservados para a cota feminina das disputas proporcionais.

Cota burlável é um bom negócio, tanto que o PL de Valdemar Costa Neto tem disputado com o PT o ranking dos partidos que mais lançam mulheres. E fez Michelle Bolsonaro voltar atrás da declaração contrária às cotas.

Somados, os votos das duas senadoras não chegaram a 5% do total. Naquele ano ainda, apenas se elegeram duas governadoras, Raquel Lyra (PSDB), em Pernambuco, e Fátima Bezerra (PT), reconduzida no Rio Grande do Norte.

Os percalços não prenunciam avanço nas próximas eleições municipais. Em artigo ainda inédito, Orjan Olsan, doutor em opinião pública e diretor da consultoria Analítica, fez um exaustivo mapeamento da evolução e do sucesso das candidaturas femininas nos municípios e detectou um quadro ainda mais dramático do que o nacional.

Enquanto as cotas elevaram as candidaturas femininas na Câmara dos Deputados de 12,7% (2006) para 35% (2022), nas assembleias passaram de 14,5% (2006) para 33,6% (2022) e, nas Câmaras de Vereadores, partiram de um patamar mais elevado de 22% (2004) para 34,7% (2020).

Nas prefeituras, porém, onde não incidem cotas, a evolução é mais acanhada. As candidaturas partiram de um patamar de 9,5% (2004) para 13,5% (2020). O resultado é que a proporção de prefeitas eleitas também subiu de inexpressivos 7% (2004) para 12% (2020).

Para o cargo de vice-prefeita, porém, os indicadores são mais elevados, o que leva Olsen a sugerir que decorram da busca de nomes que componham a chapa para atrair voto - e não para governar. Em 2004 houve 15,1% de candidatas a vice-prefeita. Em 2020, 21,5%.

Como é nos municípios que se formam as bases para as disputas nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados, fica entendido por que se avança tão pouco. Apesar de a paridade de gênero ser uma bandeira da contemporaneidade, não é nos grandes centros urbanos que tem se espraiado. De 2004 para cá apenas sete mulheres se elegeram prefeitas de capital.

Olsen vê lógica semelhante àquela que prevalece nas disputas pelos executivos estaduais, onde o processo de seleção de candidatos, centralizado nas mãos das cúpulas partidárias, tende a reduzir o peso das mulheres.

O levantamento demonstra que é dos municípios de até 50 mil eleitores que vêm 58% dos votos femininos. É no colégio eleitoral ampliado para municípios até 200 mil que as mulheres obtêm 87% de sua votação.

É o Nordeste que lidera a presença das mulheres na política. Enquanto na região, desde 2004, elegeram-se 31% dos homens alçados às prefeituras do país, a fatia das prefeitas lá eleitas é de 45% do total. O Sul e o Sudeste que, juntos, somaram 53% dos homens prefeitos, abrigaram, em contrapartida, apenas 36% das mulheres eleitas. No Norte e Centro-Oeste a participação é mais parelha. Vêm dessas regiões 18% das prefeitas e 16% dos prefeitos eleitos.

Olsen não se contentou com a explicação do familismo para a presença recorde das mulheres na política municipal do NE. Foi fuçar o perfil das eleitas. Da ocupação declarada pelas prefeitas, depreendeu que 56% vêm de serviços voltados para a comunidade (professoras, diretoras de escolas, profissionais da saúde, vereadoras e deputadas).

Entre os homens esta proporção é de 39%. A maior parte dos prefeitos é egressa do setor privado. O peso dos serviços públicos tanto nas cidades menores quanto no Nordeste, conclui, explica a presença mais avantajada das mulheres na política local.

O engajamento em serviços comunitários traz junto uma escolaridade mais elevada. Entre as prefeitas, 67% têm nível superior. A proporção é de 46% entre os homens. Apenas 5% delas têm apenas o fundamental. Entre os homens, chega a 17%.

À ocupação profissional e à formação some-se o estado civil e tem-se algo próximo a uma explicação. A dedicação cobrada pela mulher à política nem sempre coaduna com a vida familiar. Entre as prefeitas, 58% são casadas. A proporção é de 80% entre os homens. Um quarto das eleitas são solteiras, enquanto apenas 11% dos homens o são. A maior dificuldade de se conjugar política e vida familiar mostra que, na verdade, é um familismo às avessas que impera.

Maria Cristina Fernandes

 

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