Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
No país com uma das piores desigualdades de
gênero na política, levantamento mostra que a maior parte das prefeitas são do
NE, com nível superior e do serviço público. Um quarto delas são solteiras
Em outubro de 2020, Francisca das Chagas
Costa da Silva, registrada na Justiça Eleitoral como Tica Costureira,
candidatou-se a vereadora pelo PSDB de Mossoró (RN), mas não gastou um tostão,
não divulgou sua candidatura e não obteve sequer seu próprio voto.
O Tribunal Regional Eleitoral potiguar
considerou que Francisca havia desistido da candidatura e rejeitou a ação de
investigação judicial eleitoral, mas o recurso à decisão acabaria por ser
acolhido pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Na semana passada, o TSE reconheceu fraude à cota de gênero, anulou os votos recebidos pelo PSDB e cassou o mandato da vereadora Larissa Rosado, eleita pela legenda e hoje no União Brasil. Era a única vereadora da Câmara de Mossoró.
Naquela cidade, 95 anos atrás, a professora
Celina Guimarães Viana requisitou e obteve o direito de se tornar a primeira
eleitora do país, quatro anos antes da legalização do voto feminino pelo Código
Eleitoral Brasileiro.
Naquele mesmo ano, Alzira Soriano, viúva de
um promotor de justiça morto pela gripe espanhola e mãe de três filhas,
elegeu-se à Prefeitura de Lajes, a 150 quilômetros de Mossoró. Foi a primeira
prefeita brasileira, eleita seis anos antes de a médica paulista Carlota
Pereira de Queirós ser a primeira mulher a chegar à Câmara dos Deputados.
Histórias como a de Tica Costureira estão
todos os dias na pauta do TSE, ainda que poucas ilustrem tão bem o quanto a
representação política do maior contingente eleitoral do país, o das mulheres,
anda de lado e, muitas vezes, para trás.
As fraudes à cota de gênero, que obrigam os
partidos a lançar 30% de candidaturas femininas - e repassar recursos
correspondentes - somadas àquelas de raça, além das infrações no uso dos fundos
eleitoral e partidário, tem sido sucessivamente perdoadas em anistias votadas
pelo Congresso. Esta semana a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
aprovou, por 45 votos a 10, uma anistia ampla geral e irrestrita.
Se cinco deputadas - Gleisi Hoffmann
(PT-PR), Marília Arraes (SD-PE), Delegada Katarina (PSD-SE) e Julia Zanatta
(PL-SC) - votaram a favor da anistia não surpreende que o conjunto do colégio
eleitoral das mulheres brasileiras resistam a escolher candidatas para
representá-las.
Sem meios de fazer cumprir - e punir - as
infrações a uma legislação destinada a aproximar a representação feminina de
sua participação no colégio eleitoral do país, com 52% dos votos, o Brasil
exibe o pior indicador de igualdade de gênero da América Latina. A região tem o
México como exemplo mundial, com a representação parlamentar dividida meio a
meio entre homens e mulheres.
Não parece coincidência que o direito ao
aborto tenha avançado em todo o continente e permaneça um tabu no Brasil. A
União Inter-Parlamentar, das Nações Unidas, atualizou, em abril deste ano, os
dados referentes a 193 países. O Brasil está em 131º lugar. Esta colocação
traduz a ocupação de 17,5% dos assentos da Câmara e 18,5% do Senado por
mulheres.
É bem verdade que o Brasil subiu duas
posições em relação à legislatura passada, quando estava em 133º lugar, com 15%
dos assentos na Câmara e 20% no Senado. Uma das razões para esta subida, porém,
é a ausência da Venezuela no ranking deste ano, por inexistência de dados.
Quatro anos antes, o país estava melhor situado que o Brasil.
Os indicadores do Brasil o colocam abaixo
da média de cinco regiões do planeta tabulados pela ONU: Americas, Europa,
Ásia, Pacífico e África Subsaariana. O país só supera a média da região com
mais desigualdade de gênero parlamentar do levantamento, a do Oriente
Médio/Norte da África.
Se a representação das mulheres no
Congresso Nacional é sofrível, no Executivo é ainda pior. A chegada de uma
mulher à Presidência, em 2010, não alavancou a representatividade feminina,
como aconteceu, por exemplo, com a chegada de Jacinda Ardern ao cargo de
primeira-ministra da Nova Zelândia. Naquele país, a participação das mulheres
no parlamento, que já era alta (40%), chegou à paridade.
É bem verdade que foi no ano da primeira
eleição de Dilma Rousseff que a cota de 30% de mulheres candidatas nas eleições
proporcionais, estabelecida por lei do ano anterior, entrou em vigor. Sete anos
depois, o Supremo confirmou a obrigatoriedade da distribuição das verbas de
campanha proporcionalmente ao número de candidaturas de cada sexo.
Como a medida não foi capaz de evitar a
profusão de candidaturas-laranja, uma nova emenda constitucional, aprovada em
2021, trouxe outro incentivo. O texto prevê que o voto dado a mulheres e negros
seja contado em dobro para fins de distribuição dos fundos eleitoral e
partidário.
Nem esta medida proporcionou um avanço
expressivo da representatividade feminina. As cotas não se estendem à disputa
pelo Executivo, mas, de alguma forma, explicam por que, naquele ano, duas
senadoras foram lançadas à Presidência da República, Simone Tebet (MDB) e
Soraya Thronicke (União), ambas do Mato Grosso do Sul. Boa parte do dinheiro de
suas campanhas saiu dos recursos reservados para a cota feminina das disputas
proporcionais.
Cota burlável é um bom negócio, tanto que o
PL de Valdemar Costa Neto tem disputado com o PT o ranking dos partidos que
mais lançam mulheres. E fez Michelle Bolsonaro voltar atrás da declaração
contrária às cotas.
Somados, os votos das duas senadoras não
chegaram a 5% do total. Naquele ano ainda, apenas se elegeram duas
governadoras, Raquel Lyra (PSDB), em Pernambuco, e Fátima Bezerra (PT),
reconduzida no Rio Grande do Norte.
Os percalços não prenunciam avanço nas próximas
eleições municipais. Em artigo ainda inédito, Orjan Olsan, doutor em opinião
pública e diretor da consultoria Analítica, fez um exaustivo mapeamento da
evolução e do sucesso das candidaturas femininas nos municípios e detectou um
quadro ainda mais dramático do que o nacional.
Enquanto as cotas elevaram as candidaturas
femininas na Câmara dos Deputados de 12,7% (2006) para 35% (2022), nas
assembleias passaram de 14,5% (2006) para 33,6% (2022) e, nas Câmaras de
Vereadores, partiram de um patamar mais elevado de 22% (2004) para 34,7%
(2020).
Nas prefeituras, porém, onde não incidem
cotas, a evolução é mais acanhada. As candidaturas partiram de um patamar de
9,5% (2004) para 13,5% (2020). O resultado é que a proporção de prefeitas
eleitas também subiu de inexpressivos 7% (2004) para 12% (2020).
Para o cargo de vice-prefeita, porém, os
indicadores são mais elevados, o que leva Olsen a sugerir que decorram da busca
de nomes que componham a chapa para atrair voto - e não para governar. Em 2004
houve 15,1% de candidatas a vice-prefeita. Em 2020, 21,5%.
Como é nos municípios que se formam as
bases para as disputas nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados,
fica entendido por que se avança tão pouco. Apesar de a paridade de gênero ser
uma bandeira da contemporaneidade, não é nos grandes centros urbanos que tem se
espraiado. De 2004 para cá apenas sete mulheres se elegeram prefeitas de
capital.
Olsen vê lógica semelhante àquela que
prevalece nas disputas pelos executivos estaduais, onde o processo de seleção
de candidatos, centralizado nas mãos das cúpulas partidárias, tende a reduzir o
peso das mulheres.
O levantamento demonstra que é dos
municípios de até 50 mil eleitores que vêm 58% dos votos femininos. É no
colégio eleitoral ampliado para municípios até 200 mil que as mulheres obtêm
87% de sua votação.
É o Nordeste que lidera a presença das
mulheres na política. Enquanto na região, desde 2004, elegeram-se 31% dos
homens alçados às prefeituras do país, a fatia das prefeitas lá eleitas é de
45% do total. O Sul e o Sudeste que, juntos, somaram 53% dos homens prefeitos,
abrigaram, em contrapartida, apenas 36% das mulheres eleitas. No Norte e
Centro-Oeste a participação é mais parelha. Vêm dessas regiões 18% das
prefeitas e 16% dos prefeitos eleitos.
Olsen não se contentou com a explicação do
familismo para a presença recorde das mulheres na política municipal do NE. Foi
fuçar o perfil das eleitas. Da ocupação declarada pelas prefeitas, depreendeu
que 56% vêm de serviços voltados para a comunidade (professoras, diretoras de
escolas, profissionais da saúde, vereadoras e deputadas).
Entre os homens esta proporção é de 39%. A
maior parte dos prefeitos é egressa do setor privado. O peso dos serviços
públicos tanto nas cidades menores quanto no Nordeste, conclui, explica a
presença mais avantajada das mulheres na política local.
O engajamento em serviços comunitários traz
junto uma escolaridade mais elevada. Entre as prefeitas, 67% têm nível
superior. A proporção é de 46% entre os homens. Apenas 5% delas têm apenas o
fundamental. Entre os homens, chega a 17%.
À ocupação profissional e à formação
some-se o estado civil e tem-se algo próximo a uma explicação. A dedicação
cobrada pela mulher à política nem sempre coaduna com a vida familiar. Entre as
prefeitas, 58% são casadas. A proporção é de 80% entre os homens. Um quarto das
eleitas são solteiras, enquanto apenas 11% dos homens o são. A maior
dificuldade de se conjugar política e vida familiar mostra que, na verdade, é
um familismo às avessas que impera.
Maria Cristina Fernandes
Muito bom o artigo da colunista.
ResponderExcluir