sábado, 27 de maio de 2023

Pablo Ortellado - Carro ‘popular’ é política pública ruim

O Globo

Está na hora de o presidente deixar de lado seu mundo ideal dos anos 1970

A semana que passou foi de seguidas más notícias para o meio ambiente. A estrutura do Ministério do Meio Ambiente foi desmontada (e o governo não se moveu para preservá-la), uma decisão técnica do Ibama contrária à exploração de petróleo na Bacia da Foz do Rio Amazonas foi criticada por Lula, e o governo decidiu que implementará mesmo uma política de subsídios para o carro “popular”. Por trás dos três episódios, o mesmo velho modelo de desenvolvimento industrial dos anos 1970, que vê a preservação ambiental como óbice para a prosperidade econômica.

A visão de mundo de Lula parece amparada em sua experiência como trabalhador industrial. O ideal que Lula deixa transparecer nos discursos é que o Brasil se transforme numa democracia social em que o trabalhador médio tenha casa própria e um carro popular — mais ou menos como ele tinha quando era um jovem operário na Grande São Paulo dos anos 1970.

Muita coisa mudou no mundo, porém, desde que Lula deixou de ser operário. Descobrimos que as emissões de gases de efeito estufa estão aquecendo o planeta e que, se não as reduzirmos, a vida na Terra será muito difícil. Lula, que começou as negociações do Acordo de Paris, sabe bem disso, mas não parece ter atualizado seus ideais sociais para torná-los compatíveis com o aquecimento global.

O subsídio à indústria automobilística para produzir carros “populares” não faz nenhum sentido do ponto de vista urbanístico e ambiental, mas também faz pouco sentido do ponto de vista econômico.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, o trabalhador gasta em média mais de sete horas por semana se deslocando de casa para o trabalho. As políticas municipais urbanas se esforçam para reduzir o trânsito, retirando carros particulares das vias e deslocando os usuários para meios de transporte coletivo como ônibus, trens ou metrôs. Em São Paulo, maior cidade do país, todo dia de semana um rodízio de veículos tira de circulação 20% da frota, desde 1997. Faz sentido as políticas municipais incentivarem o transporte coletivo e a política federal incentivar a compra de mais carros? É a antipolítica pública.

Coisa semelhante acontece com o meio ambiente. Transportes respondem hoje por cerca de 10% das emissões de carbono no país. As duas principais medidas para reduzir as emissões no setor são ampliar o uso de transporte público e eletrificar a frota. É verdade que o carro “popular” que o governo quer subsidiar rodará apenas com etanol, menos poluente que gasolina. Mas a redução das emissões pelo uso exclusivo do etanol pode ser compensada pela ampliação da frota e pelo desestímulo ao transporte público, a depender do incentivo.

Por fim, o carro “popular” de Lula, que deverá custar por volta de R$ 60 mil, não será propriamente popular. Setenta por cento da nossa força de trabalho ganha dois salários mínimos mensais ou menos. O subsídio seguramente será aproveitado apenas pela parte de cima da nossa pirâmide social, tendo efeitos regressivos — do ponto de vista distributivo, não ajudará o pobre.

Uma política que subsidia o consumo dos mais ricos, que não ajuda claramente a reduzir as emissões de CO2 e que é prejudicial à vida nas cidades serve então para quê? Está na hora de o presidente deixar de lado seu mundo ideal dos anos 1970 e olhar as cidades brasileiras de 2023, onde os trabalhadores ganham menos de R$ 3 mil, o deslocamento de casa para o trabalho pode tomar duas horas diárias ou mais, e o aquecimento global ameaça inundar as cidades costeiras. Precisamos de menos subsídio para carros e de mais investimento em ônibus e metrôs.

 

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