Folha de S. Paulo
É imensa a lista das batalhas dentro da
mesma batalha
A aprovação ou não do PL
2630 transformou-se numa batalha moral de proporções épicas. Pelo
menos é o que se depreende de tantas forças mobilizadas para a luta.
É tanta organização do terceiro setor e tanto grupo de interesse, é toda a enorme bancada conservadora da 57ª Legislatura da Câmara, são as big techs multinacionais, em geral indiferentes aos clamores locais, as grandes empresas de jornalismo e, por fim, até consagrados artistas e realizadores culturais, prontos para a guerra, à base de lobby e manifestos, de anúncios e reportagens em jornais, em defesa da própria agenda nesse projeto. Quando cachorros grandes entram em conflito, convém não subestimar o que está em jogo.
Na verdade, há muitas batalhas travadas ao
redor do mesmo projeto e talvez isso seja um dos seus problemas. Era um projeto
sobre fake news, hoje é um projeto sobre muitos interesses.
Assim, há quem tenha vindo lutar pela
sobrevivência do jornalismo ou para defender a vida pública sem fake news e sem
o vale-tudo da guerra de informação. E há os que se alistaram para transformar
as plataformas em um safe space hipercorreto, isento de misoginia, transfobia,
racismo e de todas as fobias que se puder imaginar.
Outros compareceram para impedir o
monopólio progressista e secular das redes sociais, ou que as delicadas e
autoritárias susceptibilidades identitárias se tornem o novo parâmetro moral
para o que pode ou não ser dito online. Há ainda os que se apresentaram no
front porque não querem as mídias sociais usadas para planejar um novo 8 de
Janeiro ou para organizar e promover massacres em escolas. E há até os que
resolveram aproveitar o furor legislativo antiplataformas para fazê-las pagar
por direitos autorais. E tem, do outro lado, as empresas de plataformas e os
fabricantes de fake news, jogando na defesa, para que se mude o menos possível
de um negócio que, para eles e por diferentes razões, está dando muito certo.
É imensa, portanto, a lista das batalhas
dentro da mesma batalha. Destaco apenas uma delas, talvez a mais decisiva, quem
sabe a única que não deveria poder ser adiada.
Há uma guerra cultural em curso, entre a
nova extrema direita mundial e a cultura liberal-democrática, deliberadamente
deflagrada pelo populismo autoritário que emerge politicamente, no cenário
eleitoral internacional, em 2016. Os termos dessa guerra dizem que a
descendência do Iluminismo (os liberais, a esquerda) dominou a sociedade, o
Estado, a política, a ciência e a cultura, que a direita conservadora precisa
tomar tudo de volta e que a conquista da hegemonia depende da política
eleitoral, decerto, mas que o fluxo da mudança passa primeiro pela cultura
—isto é, pelos significados e valores socialmente compartilhados, pelas
mentalidades e visões do mundo, pelos aparatos ideológicos da distribuição da
verdade— para, enfim, chegar às eleições.
Toda luta pela hegemonia depende do
ambiente social de comunicação predominante em um determinado momento. Os
liberais das revoluções democráticas do século 18 recorreram à nascente
imprensa para enfrentar a aristocracia, os nazistas, ao rádio e ao cinema no
início do século 20, a televisão prestou-se a inúmeros usos dessa natureza
durante os 60 anos em que reinou absoluta. Neste momento, os ambientes que se
formaram sobre as plataformas digitais é que oferecem as informações de que
todos precisam, e a que todos recorrem, além dos meios e recursos de interação
e integração social de que todos necessitam e que as sociedades demandam.
Por isso, a nova extrema direita nasceu
digital e é inovadora no modo como usa tecnologias digitais de comunicação para
seus propósitos. Mas é também por isso que, ao redor do PL 2630, se disputa um
conflito decisivo pelos recursos bélicos disponíveis e pela configuração do
campo de batalha em que se trava a guerra cultural da extrema direita. Por isso
o escarcéu.
Não haveria extrema direita sem a
transformação digital da produção e consumo de informação, bem como da
interação e da integração sociais produzida pela vida online. A transformação
digital é algo inexorável e não volta atrás —apesar de tanto lamento de
nostálgicos e o neoluditas—, mas se acredita que se possa guiá-la, de alguma
forma, para que produza mais, não menos democracia.
Os bolsonaristas, contudo, não vão entregar
sequer um palmo de terreno sem luta renhida. Sabem-se minoritários na opinião
pública, mas, afinal, têm o que conta no fim do dia: votos na Câmara dos
Deputados e uma multidão compacta de apoiadores em estado de guerra permanente.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Com o professor, a garantia de uma ótima coluna.
ResponderExcluirEu também acho este cara, o Wilson Gomes, muito bom mesmo!
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