Folha de S. Paulo
Presidente americano sabota suas próprias
iniciativas internacionais com polarização interna
Putin não está sempre errado. Dias atrás, o
porta-voz do Kremlin disse que, ao qualificar Xi Jinping como
"ditador", Biden evidencia a "imprevisibilidade" da
política externa dos EUA. O líder chinês é, obviamente, um ditador. Mas o presidente
americano ilumina seus próprios dilemas geopolíticos quando utiliza o rótulo na
esteira da delicada visita de seu secretário de Estado, um gesto destinado a
restabelecer alguma normalidade nas relações entre as duas grandes potências.
A rivalidade estratégica EUA/China é o traço estruturante do atual sistema internacional. Os EUA engajam-se na contenção da potência asiática cerceando a expansão de sua indústria de semicondutores e cercando-a por dois colares insulares de acordos de cooperação político-militar no Pacífico. Taiwan, nó central do primeiro colar insular, poderia deflagrar a faísca de um incêndio devastador.
A Guerra Fria original assinalou uma paz
geral de quatro décadas. A contenção da China não precisa evoluir para uma
desastrosa confrontação –e, a fim de evitar tal desenlace, Blinken foi
encontrar-se com Xi Jinping. O problema é a "imprevisibilidade" de Washington,
que emana da polarização política doméstica nos EUA.
No passado, a histeria sobre o "perigo
amarelo" disseminou-se duas vezes pelos EUA. Na década de 1870, o alvo
eram as "hordas" de chineses, trabalhadores braçais na construção das
ferrovias, que ameaçariam os empregos dos trabalhadores brancos. Já na década
de 1920, repercutindo percepções alemãs, o alvo era o Estado japonês engajado
no pan-asiatismo e na expansão militar ao longo do Pacífico. Trump reacendeu o
alarme –e contou com a insana adesão do Partido Democrata.
O giro radical dos EUA encerrou o longo
parêntesis aberto por Richard Nixon, em 1972, de aproximação sino-americana.
Não foi repentino: a ascensão de Xi Jinping, em 2012, comandando uma política
externa crescentemente confrontacional, anunciou uma era de intensa rivalidade.
Obama tentou administrá-la em trilhos paralelos, definidos pela competição (no
campo tecnológico e militar) e pela cooperação (nos campos da segurança
internacional e das políticas ambientais). Trump eliminou a ambiguidade,
rotulando a China como inimigo estratégico.
A sinofobia envenenou a política americana.
No pleito de 2020, Biden curvou-se à retórica antichinesa trumpiana, buscando o
atalho mais fácil para o triunfo eleitoral. Daí, emergiu um raro consenso bipartidário
que colore a política externa dos EUA em fortes tons ideológicos.
"Democracias versus tiranias" – a
senha de Biden para sintetizar sua orientação de política externa não resistiu
ao teste da guerra imperial russa na Ucrânia. Diante da mais grave crise
geopolítica do século 21, Washington experimenta caminhos para restabelecer
canais básicos de comunicação com a China. Contudo, preso à retórica
antichinesa e sob pressão eleitoral dos republicanos, Biden sabota suas
próprias iniciativas. É uma previsível "imprevisibilidade".
No fim, superpotências não têm o privilégio
de subordinar seus interesses estratégicos a suas pulsões ideológicas. Biden
acaba de estender o tapete vermelho ao indiano Narendra Modi, um líder cada vez
mais autoritário, a fim de inscrever a Índia no dispositivo de contenção da
China na área do Indo-Pacífico. Nesse passo, Washington finge ignorar que, sob
o manto de uma falsa "neutralidade", a Índia aproveitou-se das
sanções ocidentais para converter-se no maior importador de petróleo russo.
O realismo marcou as relações EUA/URSS
durante a Guerra Fria, propiciando comunicações estáveis entre os militares das
duas superpotências e uma série de acordos de controle de armas nucleares. A
rivalidade EUA/China segue rumo mais perigoso, traçado pela polarização
política interna nos EUA. O verdadeiro perigo reside na retórica sobre o
"perigo amarelo".
Pode ser.
ResponderExcluirConcordo.
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