sábado, 24 de junho de 2023

Demétrio Magnoli - Biden e o 'perigo amarelo'

Folha de S. Paulo

Presidente americano sabota suas próprias iniciativas internacionais com polarização interna

Putin não está sempre errado. Dias atrás, o porta-voz do Kremlin disse que, ao qualificar Xi Jinping como "ditador", Biden evidencia a "imprevisibilidade" da política externa dos EUA. O líder chinês é, obviamente, um ditador. Mas o presidente americano ilumina seus próprios dilemas geopolíticos quando utiliza o rótulo na esteira da delicada visita de seu secretário de Estado, um gesto destinado a restabelecer alguma normalidade nas relações entre as duas grandes potências.

A rivalidade estratégica EUA/China é o traço estruturante do atual sistema internacional. Os EUA engajam-se na contenção da potência asiática cerceando a expansão de sua indústria de semicondutores e cercando-a por dois colares insulares de acordos de cooperação político-militar no Pacífico. Taiwan, nó central do primeiro colar insular, poderia deflagrar a faísca de um incêndio devastador.

A Guerra Fria original assinalou uma paz geral de quatro décadas. A contenção da China não precisa evoluir para uma desastrosa confrontação –e, a fim de evitar tal desenlace, Blinken foi encontrar-se com Xi Jinping. O problema é a "imprevisibilidade" de Washington, que emana da polarização política doméstica nos EUA.

No passado, a histeria sobre o "perigo amarelo" disseminou-se duas vezes pelos EUA. Na década de 1870, o alvo eram as "hordas" de chineses, trabalhadores braçais na construção das ferrovias, que ameaçariam os empregos dos trabalhadores brancos. Já na década de 1920, repercutindo percepções alemãs, o alvo era o Estado japonês engajado no pan-asiatismo e na expansão militar ao longo do Pacífico. Trump reacendeu o alarme –e contou com a insana adesão do Partido Democrata.

O giro radical dos EUA encerrou o longo parêntesis aberto por Richard Nixon, em 1972, de aproximação sino-americana. Não foi repentino: a ascensão de Xi Jinping, em 2012, comandando uma política externa crescentemente confrontacional, anunciou uma era de intensa rivalidade. Obama tentou administrá-la em trilhos paralelos, definidos pela competição (no campo tecnológico e militar) e pela cooperação (nos campos da segurança internacional e das políticas ambientais). Trump eliminou a ambiguidade, rotulando a China como inimigo estratégico.

A sinofobia envenenou a política americana. No pleito de 2020, Biden curvou-se à retórica antichinesa trumpiana, buscando o atalho mais fácil para o triunfo eleitoral. Daí, emergiu um raro consenso bipartidário que colore a política externa dos EUA em fortes tons ideológicos.

"Democracias versus tiranias" – a senha de Biden para sintetizar sua orientação de política externa não resistiu ao teste da guerra imperial russa na Ucrânia. Diante da mais grave crise geopolítica do século 21, Washington experimenta caminhos para restabelecer canais básicos de comunicação com a China. Contudo, preso à retórica antichinesa e sob pressão eleitoral dos republicanos, Biden sabota suas próprias iniciativas. É uma previsível "imprevisibilidade".

No fim, superpotências não têm o privilégio de subordinar seus interesses estratégicos a suas pulsões ideológicas. Biden acaba de estender o tapete vermelho ao indiano Narendra Modi, um líder cada vez mais autoritário, a fim de inscrever a Índia no dispositivo de contenção da China na área do Indo-Pacífico. Nesse passo, Washington finge ignorar que, sob o manto de uma falsa "neutralidade", a Índia aproveitou-se das sanções ocidentais para converter-se no maior importador de petróleo russo.

O realismo marcou as relações EUA/URSS durante a Guerra Fria, propiciando comunicações estáveis entre os militares das duas superpotências e uma série de acordos de controle de armas nucleares. A rivalidade EUA/China segue rumo mais perigoso, traçado pela polarização política interna nos EUA. O verdadeiro perigo reside na retórica sobre o "perigo amarelo".

 

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