Eu & / Valor Econômico
Não se pode entender a região sem levar em
conta o enorme contingente de pessoas cuja ausência efetiva de oportunidades as
leva a se atrelar às atividades predatórias
A Amazônia é a principal porta para o
futuro brasileiro. Mesmo que alguns grupos retrógrados queiram explorá-la como
no passado, destruindo-a e mimetizando atividades econômicas que pouco têm a
ver com a região, o mundo cada vez mais pressionará para que se modifique a
conduta predatória e vigore um padrão mais sustentável. A luta interna,
infelizmente, ainda está no estágio de mudança de agenda. Só que o maior
desafio é outro: urge criar uma governança especial para a Amazônia, pois sua
singularidade exigirá um novo modelo que lide com suas enormes complexidades.
Lutar contra o modelo de exploração e governança do século XX é o primeiro passo para melhorar o debate sobre a Amazônia. Há aqui três grupos que atravancam um novo tipo de desenvolvimento. O primeiro é o de atores econômicos que lideram a expansão de atividades econômicas predatórias e/ou ilícitas. Esses seguem a velha lógica exploratória presente desde o início da colonização brasileira. Ressalte-se que boa parte das lideranças políticas regionais representam, em maior ou menor medida, essa forma de pensar.
O reacionarismo das elites que exploram a
região depende muito da existência de uma larga parcela da população que seja
muito carente de renda, educação e serviços públicos básicos. Não se pode entender
a Amazônia sem levar em conta esse enorme contingente de pessoas cuja ausência
efetiva de oportunidades as leva a se atrelar às atividades predatórias. É bem
verdade que parte desse processo de simbiose se dá pela força bruta, ou então
ludibriando os mais vulneráveis, ao apresentar como uma única solução algo que
não é, como várias experiências inovadoras da região demonstram cabalmente.
O casamento forçado de elites predatórias
com grupos extremamente vulneráveis foi por vezes contrastado na região por uma
visão que representava um terceiro grupo. São os defensores de um modelo de
Estado forte, garantidor da soberania e que deriva dos atores governamentais
federais, notadamente as Forças Armadas. É inegável que os militares tiveram, e
ainda continuarão tendo, um papel positivo em várias dimensões - da política de
garantia territorial à prestação de serviços básicos. Sem eles será muito
difícil gerar um alicerce mínimo para o desenvolvimento amazônico.
Entretanto, é muito perigoso acreditar que
essa visão salvará a Amazônia. Primeiro porque ela ignora um conjunto de atores
sociais como parceiros necessários para a transformação da região. Além disso,
os militares não se libertaram por completo de suas ideias do século XX - o
modelo do Brasil Grande - e não têm sido capazes de defender uma nova forma de
desenvolvimento econômico e social frente às novas demandas do século XXI,
especialmente no campo da sustentabilidade.
Pior do que isso: nos últimos anos
bolsonaristas, uma parcela importante dos militares fechou os olhos, para dizer
o mínimo, para o crescimento desenfreado de atividades predatórias e ilegais.
Será fundamental para o país resgatar o sentido nobre da ação das Forças
Armadas na região, retirando a ideologia do Brasil Grande e as marcas antipatriotas
que o bolsonarismo tentou expandir.
A Amazônia vai precisar de um modelo
especial de governança multinível. Trata-se de uma estrutura capaz de
estabelecer articulação, diálogo, resolução de conflitos e colaboração entre os
atores sociais, os três entes federativos, a comunidade internacional, agentes
econômicos e especialistas de diversas áreas, pois somente um olhar
interdisciplinar e uma atuação intersetorial poderão garantir a produção das
políticas públicas adequadas à região.
Obviamente que a soberania é sempre
garantida em última análise pelo governo federal, mas esse não terá capacidade
sozinho de melhorar o padrão de desenvolvimento sem atuar em parceria com um
conjunto amplo de atores locais e externos. Construir um modo interdependente de
governança deveria, assim, ser a maior prioridade na Amazônia.
Só que não basta enunciar a necessidade de
um modelo de governança multinível à Amazônia. Há peculiaridades na região que
tornam necessário encontrar uma solução singular para os seus problemas.
Trata-se de um território com muitas complexidades que precisam ser levadas em
conta. Dentre os desafios complexos que envolvem a governança amazônica, podem
ser destacados aqui cinco cujo equacionamento é fundamental.
O primeiro diz respeito às peculiares
condições geográficas e sociais da região. Muitas vezes se tentou replicar
modelos de políticas públicas testados noutras partes do país e os resultados
geralmente foram ruins. Na educação, por exemplo, o transporte fluvial é muito
marcante, a alimentação escolar deve ter um outro cardápio, há mais necessidade
de ensino remoto, salas multisseriadas são mais comuns e não se pode esquecer
que a presença das comunidades indígenas produz alterações no sistema
educacional. Essa variedade de singularidades poderia ser repetida em outros
setores, como saúde, habitação, recursos hídricos ou políticas urbanas.
É preciso produzir um cardápio de políticas
públicas mais adequado à região. O mimetismo homogeneizador tem produzido
vários erros na resolução dos problemas locais. A geografia, ademais, gera uma
outra peculiaridade, que é o tipo de município. Em linhas gerais, são menos
municipalidades, mais distantes entre si, muitas com grande extensão
territorial, com uma densidade demográfica baixa acoplada à pouca atividade
econômica tributável. Tudo isso torna a gestão territorial mais complexa na
Amazônia. Um dado que expressa o isolamento localista: a região Norte, que
abarca a maior parte da área amazônica, é a que tem, disparado, o menor número
de consórcios intermunicipais no Brasil.
Essa enorme singularidade geográfica e
social se dá exatamente num território essencial para o desenvolvimento
sustentável do país e do mundo, fundamental para a nossa soberania e para
algumas das nações sul-americanas. Tal complexidade política exige uma maior
presença da União, inevitavelmente. Eis aqui o segundo desafio da governança
amazônica.
Para dar conta dele, duas questões devem
ser enfrentadas. A primeira é que o presidente Bolsonaro destruiu as agências
governamentais e as burocracias do governo federal presentes por lá. A
reconstrução desses instrumentos político-administrativos federais é condição
sine qua non para mudar o padrão de desenvolvimento. Porém, e aqui entra a
segunda questão, é preciso não cair na crença equivocada de que a solução
centralizadora é suficiente para melhorar a Amazônia. Além de ser uma forma não
democrática de enxergar o federalismo pós-1988 - outro pecado que o
bolsonarismo cometeu, com prejuízos ao país -, a visão centralista efetivamente
não resolve os problemas amazônicos.
O terceiro desafio, desse modo, é criar uma
governança colaborativa entre União e os governos subnacionais da região. Isso
envolve, primeiramente, a construção de uma parceria mais forte com os estados,
que estão mais próximos do poder local e podem ter um papel coordenador por
vezes mais efetivo do que aquele advindo da distante Brasília. Claro que o
sucesso dessa articulação intergovernamental vai depender muito dos incentivos
que o governo federal der aos governos estaduais em prol de um modelo mais
orientado pelo desenvolvimento sustentável.
Ademais, a implementação final das
políticas está a cargo dos municípios, e o que se destaca neste caso são as
baixas capacidades estatais locais, maiores do que em outras regiões - o que
pode ser visto, por exemplo, pelo reduzido contingente de médicos e professores
em relação às necessidades da população. A União e os governos estaduais, em
parceria, vão ter de atuar para construir capacidades estatais na maior parte
dos municípios amazônicos, devidamente adequadas às condições locais. Sem
municipalidades fortes, será mais difícil oferecer as políticas públicas que
geram as oportunidades hoje dadas por atividades predatórias e ilícitas para os
grupos sociais mais vulneráveis.
E aqui entra o quarto desafio: a expansão
do poder de atores não estatais, especialmente vinculados a atividades
criminosas, como o garimpo ilegal e as diversas formas de tráfico presentes na
região. Para vencê-los, é necessário o governo federal e todo o seu aparato
burocrático, mas isso não será suficiente sem o apoio de governos subnacionais
fortalecidos.
Como quinto e último desafio de governança
está a necessidade de criar inovações econômicas sustentáveis que se articulem
com as demandas locais, gerando escala em termos de emprego e renda. Muitas
coisas inovadoras neste sentido estão ocorrendo, contudo, não no tamanho
necessário para vencer o modelo predatório. É preciso aumentar a capacidade de
replicar experiências bem-sucedidas e angariar mais apoio econômico e
tecnológico, num patamar que inevitavelmente passa pelo suporte internacional,
que também hoje é bem menor do que deveria ser.
Os cinco desafios conformam uma ampla e
complexa teia de articulações. Para lidar com isso, somente instalando uma
governança especial para a região amazônica. Dada sua relevância e envergadura,
este trabalho deveria estar no topo da agenda das elites políticas, econômicas
e sociais do país. Assim, a Amazônia deixaria de ser comandada pelas forças do
passado e abriria as portas de nosso futuro.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Leitura imperdível. Pode não ter todas as soluções pra Amazônia, mas esta visão é muito bem vinda! Parabéns ao autor, e ao blog por nos oferecer esta excelente análise!
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