sexta-feira, 23 de junho de 2023

José de Souza Martins* - Poder e direito à diferença na Câmara dos Deputados

Eu & / Valor Econômico

Casa tem uma notável história de presenças de pessoas que se expressam com lucidez e democrático compromisso com o mandato no marco de referência da Constituição

Estes primeiros meses da nova legislatura da Câmara dos Deputados fazem uma interessante revelação sobre o Brasil político: a enorme e democrática importância dos parlamentares que expressam o modo de pensar e de ser dos brasileiros que não sucumbiram à prepotência e às violações do bolsonarismo e suas aspirações ditatoriais antidemocráticas e antissociais.

Desde a CPI da Covid já havia indícios desse novo e pluralista sujeito da democracia. Da podridão do regime de 2019 nascia um novo Brasil político. Mesmo quem é eleito por gente autoritária e intolerante, apesar do seu atraso barulhento, o que tem legitimidade no poder é o que terá sentido na perspectiva constitucional e democrática. Frequentemente, na prática legislativa, os que falam fora dos marcos constitucionais nada falam. São parlamentares inúteis porque ignorantes do que é representação política, isto é, o Outro que define a sua identidade de representante de um sujeito político que não é ele próprio.

A Câmara tem uma notável história de presenças sempre surpreendentes, de pessoas que se expressam com grande lucidez e democrático compromisso com o mandato no marco de referência da Constituição e das leis, um sujeito maior e melhor do que suas pessoas, a democracia.

Nas Comissões Parlamentares de Inquérito temos visto mulheres e homens de grande discernimento e coragem a enfrentar a prepotência e o autoritarismo de deputados que se julgam eleitos para negar o significado constitucional profundo do voto e da representação política. Representação quer dizer presença do ausente e não presença própria.

Eleito, o deputado nega-se na alteridade de que é voz e presença para viabilizá-la. Na aceitação do mandato há uma renúncia sacrificial à pessoalidade e à subjetividade que passam a existir entre parênteses na vida privada do eleito.

Mesmo que um parlamentar tenha no punhado dos seus constituintes um elenco suficientemente numeroso de pessoas destituídas de discernimento propriamente político e que ele próprio seja um ignorante completo, sua voz se esgota no limite da identidade do representado, o ser coletivo de uma vontade republicana e democrática anterior a esse mandato. O de um momento relativamente raro, o da Constituinte, que deu vida ao nosso melhor projeto de nação. A mais lúcida expressão de nossas necessidades sociais, pluralistas e democráticas: a Constituição de 1988.

É mais do que um documento de referência. É um mandato e um pacto de destino. Nesse marco, o mandato é um filtro que segrega tudo que o nega.

Quando a pessoa tira o título eleitoral, adere ao pacto político implícito, torna-se membro da ordem política, regulada pela Constituição. Sujeita-se, torna-se outra e diferente pessoa, torna-se o Outro, altruísta, sujeito da cidadania.

Da Câmara atual, faz parte um membro da família imperial brasileira. A Câmara é uma instituição do Poder Legislativo e, constitucionalmente, local da voz política de um Brasil republicano. Ali, o membro da família monárquica não representa uma opção pela monarquia, mas a tolerância do nosso regime republicano pela diferença que ele é.

O regime político brasileiro tolera democraticamente essa diferença e lhe dá o direito de falar no marco de referência da República. Um monarquista pode ser voz de expressão de vontades sociais construtivas no aperfeiçoamento da sociedade democrática e republicana.

Pode-se aplicar o mesmo princípio à questão da religião. O eleito pode ser evangélico ou católico ou professo de qualquer outra convicção religiosa ou de nenhuma. Somos um país que tem pelo menos 1 milhão de pessoas que têm fé, mas não têm religião e tem numerosos professos de religiões que são ecumênicos, isto é, pluralistas.

O evangélico ou o confessante de qualquer outra religião não pode transformar nenhum dos poderes da República em templo de sua crença ou de sua falta de crença. Isso negaria a própria liberdade democrática que lhe permite ser religiosamente único e politicamente plural.

Foi o Brasil oficialmente católico que, já no Império, reconheceu o direito à diversidade religiosa que abriu espaço para que protestantes tivessem voz e opinião religiosa no país. Sem isso, o nosso teria permanecido um país antidemocraticamente fechado à importância socialmente criativa da diversidade das crenças, isto é, da pluralidade das formas de conhecimento do sagrado. Essa postura do Brasil católico ampliou nosso caminho rumo à civilização.

Não tenho o menor direito de impor ao outro minhas convicções religiosas se elas limitam e tolhem as suas. Até porque, desse modo, minha intolerância comprometerá minha própria liberdade de crença. A política é dialética.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).

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