sexta-feira, 23 de junho de 2023

Fernando Abrucio* - Governança especial para a Amazônia

Eu & / Valor Econômico

Não se pode entender a região sem levar em conta o enorme contingente de pessoas cuja ausência efetiva de oportunidades as leva a se atrelar às atividades predatórias

A Amazônia é a principal porta para o futuro brasileiro. Mesmo que alguns grupos retrógrados queiram explorá-la como no passado, destruindo-a e mimetizando atividades econômicas que pouco têm a ver com a região, o mundo cada vez mais pressionará para que se modifique a conduta predatória e vigore um padrão mais sustentável. A luta interna, infelizmente, ainda está no estágio de mudança de agenda. Só que o maior desafio é outro: urge criar uma governança especial para a Amazônia, pois sua singularidade exigirá um novo modelo que lide com suas enormes complexidades.

Lutar contra o modelo de exploração e governança do século XX é o primeiro passo para melhorar o debate sobre a Amazônia. Há aqui três grupos que atravancam um novo tipo de desenvolvimento. O primeiro é o de atores econômicos que lideram a expansão de atividades econômicas predatórias e/ou ilícitas. Esses seguem a velha lógica exploratória presente desde o início da colonização brasileira. Ressalte-se que boa parte das lideranças políticas regionais representam, em maior ou menor medida, essa forma de pensar.

O reacionarismo das elites que exploram a região depende muito da existência de uma larga parcela da população que seja muito carente de renda, educação e serviços públicos básicos. Não se pode entender a Amazônia sem levar em conta esse enorme contingente de pessoas cuja ausência efetiva de oportunidades as leva a se atrelar às atividades predatórias. É bem verdade que parte desse processo de simbiose se dá pela força bruta, ou então ludibriando os mais vulneráveis, ao apresentar como uma única solução algo que não é, como várias experiências inovadoras da região demonstram cabalmente.

O casamento forçado de elites predatórias com grupos extremamente vulneráveis foi por vezes contrastado na região por uma visão que representava um terceiro grupo. São os defensores de um modelo de Estado forte, garantidor da soberania e que deriva dos atores governamentais federais, notadamente as Forças Armadas. É inegável que os militares tiveram, e ainda continuarão tendo, um papel positivo em várias dimensões - da política de garantia territorial à prestação de serviços básicos. Sem eles será muito difícil gerar um alicerce mínimo para o desenvolvimento amazônico.

Entretanto, é muito perigoso acreditar que essa visão salvará a Amazônia. Primeiro porque ela ignora um conjunto de atores sociais como parceiros necessários para a transformação da região. Além disso, os militares não se libertaram por completo de suas ideias do século XX - o modelo do Brasil Grande - e não têm sido capazes de defender uma nova forma de desenvolvimento econômico e social frente às novas demandas do século XXI, especialmente no campo da sustentabilidade.

Pior do que isso: nos últimos anos bolsonaristas, uma parcela importante dos militares fechou os olhos, para dizer o mínimo, para o crescimento desenfreado de atividades predatórias e ilegais. Será fundamental para o país resgatar o sentido nobre da ação das Forças Armadas na região, retirando a ideologia do Brasil Grande e as marcas antipatriotas que o bolsonarismo tentou expandir.

A Amazônia vai precisar de um modelo especial de governança multinível. Trata-se de uma estrutura capaz de estabelecer articulação, diálogo, resolução de conflitos e colaboração entre os atores sociais, os três entes federativos, a comunidade internacional, agentes econômicos e especialistas de diversas áreas, pois somente um olhar interdisciplinar e uma atuação intersetorial poderão garantir a produção das políticas públicas adequadas à região.

Obviamente que a soberania é sempre garantida em última análise pelo governo federal, mas esse não terá capacidade sozinho de melhorar o padrão de desenvolvimento sem atuar em parceria com um conjunto amplo de atores locais e externos. Construir um modo interdependente de governança deveria, assim, ser a maior prioridade na Amazônia.

Só que não basta enunciar a necessidade de um modelo de governança multinível à Amazônia. Há peculiaridades na região que tornam necessário encontrar uma solução singular para os seus problemas. Trata-se de um território com muitas complexidades que precisam ser levadas em conta. Dentre os desafios complexos que envolvem a governança amazônica, podem ser destacados aqui cinco cujo equacionamento é fundamental.

O primeiro diz respeito às peculiares condições geográficas e sociais da região. Muitas vezes se tentou replicar modelos de políticas públicas testados noutras partes do país e os resultados geralmente foram ruins. Na educação, por exemplo, o transporte fluvial é muito marcante, a alimentação escolar deve ter um outro cardápio, há mais necessidade de ensino remoto, salas multisseriadas são mais comuns e não se pode esquecer que a presença das comunidades indígenas produz alterações no sistema educacional. Essa variedade de singularidades poderia ser repetida em outros setores, como saúde, habitação, recursos hídricos ou políticas urbanas.

É preciso produzir um cardápio de políticas públicas mais adequado à região. O mimetismo homogeneizador tem produzido vários erros na resolução dos problemas locais. A geografia, ademais, gera uma outra peculiaridade, que é o tipo de município. Em linhas gerais, são menos municipalidades, mais distantes entre si, muitas com grande extensão territorial, com uma densidade demográfica baixa acoplada à pouca atividade econômica tributável. Tudo isso torna a gestão territorial mais complexa na Amazônia. Um dado que expressa o isolamento localista: a região Norte, que abarca a maior parte da área amazônica, é a que tem, disparado, o menor número de consórcios intermunicipais no Brasil.

Essa enorme singularidade geográfica e social se dá exatamente num território essencial para o desenvolvimento sustentável do país e do mundo, fundamental para a nossa soberania e para algumas das nações sul-americanas. Tal complexidade política exige uma maior presença da União, inevitavelmente. Eis aqui o segundo desafio da governança amazônica.

Para dar conta dele, duas questões devem ser enfrentadas. A primeira é que o presidente Bolsonaro destruiu as agências governamentais e as burocracias do governo federal presentes por lá. A reconstrução desses instrumentos político-administrativos federais é condição sine qua non para mudar o padrão de desenvolvimento. Porém, e aqui entra a segunda questão, é preciso não cair na crença equivocada de que a solução centralizadora é suficiente para melhorar a Amazônia. Além de ser uma forma não democrática de enxergar o federalismo pós-1988 - outro pecado que o bolsonarismo cometeu, com prejuízos ao país -, a visão centralista efetivamente não resolve os problemas amazônicos.

O terceiro desafio, desse modo, é criar uma governança colaborativa entre União e os governos subnacionais da região. Isso envolve, primeiramente, a construção de uma parceria mais forte com os estados, que estão mais próximos do poder local e podem ter um papel coordenador por vezes mais efetivo do que aquele advindo da distante Brasília. Claro que o sucesso dessa articulação intergovernamental vai depender muito dos incentivos que o governo federal der aos governos estaduais em prol de um modelo mais orientado pelo desenvolvimento sustentável.

Ademais, a implementação final das políticas está a cargo dos municípios, e o que se destaca neste caso são as baixas capacidades estatais locais, maiores do que em outras regiões - o que pode ser visto, por exemplo, pelo reduzido contingente de médicos e professores em relação às necessidades da população. A União e os governos estaduais, em parceria, vão ter de atuar para construir capacidades estatais na maior parte dos municípios amazônicos, devidamente adequadas às condições locais. Sem municipalidades fortes, será mais difícil oferecer as políticas públicas que geram as oportunidades hoje dadas por atividades predatórias e ilícitas para os grupos sociais mais vulneráveis.

E aqui entra o quarto desafio: a expansão do poder de atores não estatais, especialmente vinculados a atividades criminosas, como o garimpo ilegal e as diversas formas de tráfico presentes na região. Para vencê-los, é necessário o governo federal e todo o seu aparato burocrático, mas isso não será suficiente sem o apoio de governos subnacionais fortalecidos.

Como quinto e último desafio de governança está a necessidade de criar inovações econômicas sustentáveis que se articulem com as demandas locais, gerando escala em termos de emprego e renda. Muitas coisas inovadoras neste sentido estão ocorrendo, contudo, não no tamanho necessário para vencer o modelo predatório. É preciso aumentar a capacidade de replicar experiências bem-sucedidas e angariar mais apoio econômico e tecnológico, num patamar que inevitavelmente passa pelo suporte internacional, que também hoje é bem menor do que deveria ser.

Os cinco desafios conformam uma ampla e complexa teia de articulações. Para lidar com isso, somente instalando uma governança especial para a região amazônica. Dada sua relevância e envergadura, este trabalho deveria estar no topo da agenda das elites políticas, econômicas e sociais do país. Assim, a Amazônia deixaria de ser comandada pelas forças do passado e abriria as portas de nosso futuro.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

 

Um comentário:

Daniel disse...

Leitura imperdível. Pode não ter todas as soluções pra Amazônia, mas esta visão é muito bem vinda! Parabéns ao autor, e ao blog por nos oferecer esta excelente análise!