quarta-feira, 21 de junho de 2023

José Eduardo Faria* - O Supremo merecia mais respeito

Folha de S. Paulo

Indicações recentes comprometem isenção, independência e autoridade moral

Como o verso e o reverso de uma moeda, a indicação pelo presidente da República de um novo ministro para o Supremo Tribunal Federal, corte encarregada de atuar como guardiã da Constituição, teve dois lados.

O primeiro é de ordem moral. Se Jair Bolsonaro justificou sua primeira indicação alegando que precisava ter no STF alguém com quem pudesse tomar tubaínaLula afirmou que gostaria de ter na corte alguém que pudesse chamar ao telefone quando quisesse —este último deverá ser sabatinado nesta quarta-feira (21) no Senado. Oportunismo ou má-fé? Ignorância ou falsa esperteza?

Qualquer que seja a resposta, indicações como essas afrontam os princípios constitucionais da impessoalidade e independência do Supremo, apequenando-o, aparelhando-o politicamente e comprometendo sua isenção, independência e autoridade moral.

O segundo lado envolve a despreocupação do ex e do atual presidente com os riscos de inconsistência técnico-jurídica das tomadas pelos ministros que indicaram. Incapazes de diferenciarem Estado e governo e de separarem governo de partido do governo, Bolsonaro e Lula jamais se preocuparam com a baixíssima qualificação dos nomes que escolheram. Ambos talvez nem saibam que a adjudicatura não pode ser exercida sem um mínimo de competência por quem, apesar de ter sido advogado, carece de conhecimento de teoria do direito e de doutrina, não tem pensamento consolidado e não compreende que pertencer a uma ordem jurídica também implica fruir do reconhecimento da condição humana. Trata-se, por isso, de um perigoso retrocesso institucional.

Como lembra Frederico de Almeida, professor de ciência política da Unicamp, em "A Nobreza Togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil", desde a reforma universitária de 1968 e da expansão dos cursos de pós-graduação o STF passou a contar com ministros pós-graduados. Esse fato se tornou evidente após a redemocratização do país. A partir daí, segundo Almeida, 40% dos indicados possuíam o título de mestre e/ou de doutor. E 90% dos ministros que chegaram à corte após a queda da ditadura tinham experiência docente, eram respeitados por seu saber acadêmico, conheciam direito comparado, sabiam enumerar as aporias da hermenêutica jurídica, tinham posição definida acerca do caráter prescritivo da Constituição e já haviam publicado livros. Em 2007, dos 11 ministros do STF, 9 possuíam o título de pós-graduação stricto sensu e 10 eram professores em respeitadas universidades públicas.

Essa era uma evidência de que atendiam ao requisito constitucional de notório saber jurídico. Por mais que essa expressão seja algo imprecisa, aqueles ministros tinham cultura jurídica. Sabiam pensar com método. Haviam escrito teses. Vários eram reconhecidos internacionalmente como doutrinadores. Tinham o que falta ao tomador de tubaína, ao terrivelmente evangélico e ao advogado pessoal de quem o indicou.

Quem conhece o que esses três pensam acerca de questões jurídicas candentes, após terem saído do baixo clero do universo jurídico para vestirem uma toga na mais alta corte do país?

Sabem eles responder sem consultar o Google qual foi o período histórico em que os direitos humanos assumiram a forma de um elenco sistemático de princípios? Conseguem explicar por que o conceito de política, em inglês, é expresso por três palavras distintas —"polity", "politics" e "policy"? Sabem diferenciar regras e princípios e as implicações hermenêuticas dessa distinção? Partindo da tensão entre universalismo versus relativismo, conseguem desenvolver uma abordagem pluralista dos direitos humanos?

Que a Suprema Corte precisava de nomes com preparo, história e independência, isso é fato. O problema é que o preço do desprezo a essa obviedade é alto, na medida em que abre caminho para todo tipo de oportunismo e casuísmo. A conversão do tribunal em "anexo do governo de ocasião", como afirmou a Transparência Internacional, é uma afronta ao princípio constitucional da autonomia dos Poderes, comprometendo assim a isenção e a legitimidade da corte como guardiã da Constituição e garantidora da democracia.

*Professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP

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