O Globo
Julgamento de Jair Bolsonaro Bolsonaro será
pelo conjunto da obra do seu trabalho para montar as bases de uma ruptura
autoritária
O julgamento de Jair Bolsonaro que será
retomado hoje com o voto do relator, o ministro Benedito Gonçalves, no Tribunal
Superior Eleitoral, é sobre o conjunto da obra. Mas isso é errado
juridicamente? Não, porque os fatos estão interligados. Bolsonaro não acordou
um dia querendo falar mentiras para embaixadores. Ele seguiu um roteiro
golpista, desde o início, o que nos levou ao maior risco enfrentado pela
democracia brasileira desde o fim da ditadura militar. Ele ter sido derrotado
nas urnas não atenua o crime. A democracia precisa estabelecer os limites do
uso do poder político por um presidente da República.
O fato em si, mesmo isolado da sequência de eventos, é grave o suficiente. Bolsonaro usou todo o aparato da presidência, convocou o corpo diplomático, a estrutura de comunicação estatal e desfilou mentiras sobre o processo eleitoral brasileiro a dois meses e 14 dias das eleições. Ao mesmo tempo que tentava neutralizar reações de outros países, a fala foi dirigida ao eleitor através da TV pública, e todo o uso de partes das declarações nas redes pessoais do investigado. Essa difusão da mensagem foi ressaltada pelo vice-procurador geral eleitoral, Paulo Gonet, no seu parecer no primeiro dia do julgamento, na qual ele afirma que ficou comprovado o desvio de finalidade e o abuso de poder.
É sabido, por fartas declarações do próprio
ex-presidente, que ele tem preferência por ditaduras, e avalia que a tortura é
um método legítimo de derrotar adversários e dissidentes políticos. Com esses
valores distorcidos, ele chegou ao poder pela via democrática. Colocou em
vigor, então, o seu plano de solapar a própria democracia. Bolsonaro escolheu
como caminho principal, para a realização do seu intento, o de corroer a
legitimidade do processo eleitoral, a confiança na urna eletrônica, e a
integridade do próprio tribunal eleitoral. Não foi inovador. Outros candidatos
a ditador fizeram o mesmo percurso, alguns com grande sucesso, como o coronel
Hugo Chávez.
As mentiras de Bolsonaro contra a urna, o
processo eleitoral e o TSE foram reiteradas e não mudavam mesmo diante das
inúmeras comprovações de que mentia aos eleitores. Suas mentiras foram
desfeitas com fatos objetivos. Bolsonaro jamais se rendeu à verdade. Isso prova
que ele não tinha dúvidas, que até podem ocorrer a qualquer cidadão. Ele usava
a farsa sobre o processo eleitoral como método de inocular o vírus da
desconfiança e, assim, adoecer o próprio organismo democrático. O julgamento
dele no TSE será a necessária vacina contra essa infecção.
Que a doença se espalhou pelo corpo da
Nação não há dúvidas. Por causa das mentiras de Bolsonaro, seus eleitores
permaneceram mobilizados antes, durante e depois das eleições. Pelo golpismo de
empresários, os manifestantes foram financiados. Pela conspiração dentro das
Forças Armadas eles puderem usar a frente dos quartéis como centro de
planejamento dos seus atos. E alguns atos terroristas, como o vandalismo de 12
de dezembro, a tentativa de explosão de um caminhão no aeroporto de Brasília.
E, por fim, o atentado às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro.
O advogado de defesa, Tarcísio Vieira, foi
pela linha de que Bolsonaro agiu mal sim, mas deveria apenas ser multado.
Alegou que foi uma reunião institucional com os embaixadores, sem ligação com
os fatos posteriores. E que considerar essa conexão seria uma “causa de pedir”
em aberto, uma anomalia jurídica. Alegou que, inclusive, o seu cliente
permaneceu silencioso após as eleições. Na verdade, foi um silêncio calculado.
Ele não reconheceu o resultado, e ainda alimentou por interpostas pessoas a
ideia de que algo estava por vir. Um desses agentes foi o ex-candidato a vice-
presidente, general Braga Netto. O general depois de reunião com Bolsonaro
entregou à militância acampada uma mensagem enigmática e estimuladora. “Não
percam a fé, é só o que eu posso falar agora”. Isso dezenove dias depois do
resultado das urnas.
O procurador Paulo Gonet sobre o 8 de
janeiro definiu bem. “O discurso contra a confiabilidade do sistema de votação
eletrônica – mesmo que não visasse a esses resultados específicos – não poderia
ter mais expressiva revelação do seu infesto potencial antidemocrático”.
Bolsonaro trabalhou durante todo o seu
governo montando as bases de uma ruptura autoritária. A democracia precisa se
defender. Condená-lo à inelegibilidade é o primeiro passo.
Verdade.
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