segunda-feira, 17 de julho de 2023

Bruno Carazza* - A reforma ministerial necessária e indesejada

Valor Econômico

Ampliar a base é preciso, mas amigos serão sacrificados

Dia 25 de abril de 1996, meia-noite. No gravador em que registrou o cotidiano de seus oito anos de governo, Fernando Henrique Cardoso relatava que aquele havia sido, se não o mais difícil, com certeza o mais duro dia desde que assumira a Presidência da República, em 1º de janeiro do ano anterior.

FHC havia acabado de chegar do apartamento de sua ministra da Indústria, Comércio e Turismo, Dorothea Werneck, aonde fora comunicar a decisão de demiti-la. Segundo o registro, publicado na primeira edição de seu Diários da Presidência (1995-1996), a conversa durou quase três horas, houve choro de ambas as partes, desabafo, queixas e até uma ponta de arrependimento.

Dorothea Werneck era uma ministra de perfil estritamente técnico. Formada em economia na UFMG, foi aluna do famoso curso de mestrado montado por Mário Henrique Simonsen na FGV e depois se doutorou no Boston College, nos EUA. De volta ao Brasil, trabalhou no Ipea e foi professora da UFRJ.

Suas pesquisas em economia do trabalho e industrialização a credenciaram para aceitar o convite para servir o Estado durante os governos Sarney, Collor e Itamar. Nesse período, ela foi uma das idealizadoras do seguro-desemprego, conduziu o processo de abertura comercial e implantou políticas voltadas para a competitividade da indústria. Chegou a ser ministra do Trabalho na gestão Sarney.

Combinando formação acadêmica e experiência governamental, aliadas ao fato de ser filiada ao PSDB e ter ótima relação com FHC e a equipe que acabara de implementar o Plano Real, Dorothea foi uma escolha natural para integrar o governo eleito em 1994. Nos diários, o ex-presidente revela apenas a dúvida se a colocaria à frente do Trabalho ou da Indústria e Comércio - acabou decidindo pela segunda opção.

O ministério montado por FHC ao tomar posse se baseava em três grupos muito nítidos. Nas pastas estratégicas para o desenvolvimento econômico e social, foram designados técnicos reconhecidos em suas áreas: os economistas Pedro Malan, Paulo Paiva e a própria Dorothea, respectivamente, na Fazenda, Trabalho e Indústria e Comércio, o médico Adib Jatene na Saúde e o ex-reitor da Unicamp Paulo Renato Souza na Educação.

A esse grupo se somavam políticos da estrita confiança de FHC, como José Serra no Planejamento, Bresser-Pereira na Reforma do Estado, Sérgio Motta nas Comunicações e Nelson Jobim na Justiça.

Os ministérios setoriais foram usados para acomodar indicações dos partidos que iriam integrar a base de governo: o senador José Eduardo de Andrade Vieira (PTB, na Agricultura), os deputados Odacir Klein (PMDB, Transportes) e Reinhold Stephanes (PFL, Previdência) e Raimundo Brito (indicação de Antônio Carlos Magalhães, do PFL, em Minas e Energia).

Olhando para o Congresso, FHC podia contar com os 66 deputados do PSDB e mais as bancadas do PMDB (107 deputados), PFL (92) e PTB (32), todos representados na Esplanada dos Ministérios. Somados os quatro partidos, FHC tinha uma base de 297 deputados, o que não garantia o quórum mínimo de 308 parlamentares para se aprovar uma reforma constitucional.

Em meados do segundo ano de mandato, FHC tinha várias PECs aguardando votação: reforma administrativa, desregulamentação do sistema financeiro, criação da CPMF e, logo em seguida, a emenda autorizando a sua reeleição.

Foi neste momento que a cabeça de Dorothea Werneck foi colocada a prêmio. Nos cálculos de seus estrategistas políticos, a vida de FHC no Congresso ficaria muito mais fácil se o presidente conseguisse atrair para a sua base o PPB, que tinha uma bancada de 79 deputados.

Mas o PPB estava rachado. Uma parte do partido, comandada por Paulo Maluf, queria ficar na oposição. A outra aceitava entrar no governo, desde que recebesse um ministério grande “para fins que só Deus sabe quais”, dizia Fernando Henrique.

No meio da barganha, o nome de Dorothea Werneck foi oferecido em sacrifício, e o PPB aceitou o Ministério da Indústria e Comércio em troca dos votos necessários para a aprovação dos projetos de FHC.

Ao narrar o encontro que teve com Dorothea para anunciar sua decisão, FHC admitiu: “Dorothea é uma pessoa admirável e fui ficando com raiva de mim mesmo. Porque na verdade eu fiz a escolha de Sofia, não tinha jeito, eu sei que não tem jeito, porque ou tem o PPB, ou não passam as reformas, mas justamente em cima da Dorothea é uma coisa muito pesada para ela e para mim”, refletiu o então presidente.

Essa história é de 1996. Em 2003 o PPB foi rebatizado e passou a se chamar Partido Progressista (PP). Legenda do presidente da Câmara, Arthur Lira, é em torno dela que gravita o Centrão. O mesmo Centrão que fez FHC jogar aos leões uma ministra técnica e filiada a seu partido agora coloca Lula contra a parede por uma reforma ministerial.

Lula enfrenta neste momento a mesma pressão e os mesmos dilemas vividos por FHC em relação a Dorothea Werneck. A escolha de Sofia já foi feita e o Centrão entrará no governo nos próximos dias. Haverá choro e ranger de dentes no núcleo de aliados petistas.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

 

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