Folha de S. Paulo
Livro reconta discussões no início do
milagre chinês sobre estratégia em transição para o mercado
A editora Boitempo acaba de publicar um
livraço: "Como a China escapou
da terapia de choque", de Isabella M. Weber. É uma história dos debates
entre os economistas chineses, nos anos 80 do século passado, sobre que
estratégia a China adotaria em sua transição para o mercado. Se você quer saber
como a China chegou aonde chegou, é leitura obrigatória.
É inevitável comparar o extraordinário
sucesso da economia chinesa nas últimas décadas com o colapso da Rússia no
mesmo período. Weber parte da ideia, comum na literatura especializada, de que
diferenças de estratégia econômica explicam essa diferença de desempenho.
Seu foco está nas políticas de liberação
dos preços, que sob o planejamento socialista eram fixados pelo governo. A
Rússia adotou a "terapia de choque": liberou todos os preços em um
período muito curto. A China adotou um sistema dual em que, por um período
maior, conviveram preços controlados e liberados.
Entretanto, como nota a autora no ponto alto do livro, a China quase implementou a terapia de choque ainda nos anos 80. Para reconstruir essa disputa, Weber entrevistou sobreviventes, teve acesso a textos censurados e reconstituiu debates clássicos (e muito bons) do campo socialista. A discussão sobre as posições (e possíveis inconsistências) do economista húngaro Janos Kornai –uma figura importantíssima– é um dos pontos altos do livro.
Segundo a autora, os adversários dos
"terapeutas de choque" não se opunham à transição para uma economia de mercado.
Na verdade, discordavam da ideia de que um choque de preços pudesse funcionar
antes que houvesse empresas capitalistas que, por dependerem de seus lucros
para sobreviver, fossem forçadas a se orientar pelo mecanismo de preços.
Enquanto as empresas chinesas não fossem
reformadas, argumentavam, preços liberados só gerariam inflação,
lucros altos para monopólios e ineficiências generalizadas. O sistema dual de
preços seria a melhor solução, não em comparação com um modelo abstrato de
economia de mercado, mas entre as alternativas disponíveis para a China da
época.
O livro termina com um plot twist trágico.
Economistas que barraram a terapia de choque nos anos 90 caíram em desgraça por
terem apoiado os protestos da Praça da Paz
Celestial. Enquanto isso, alguns dos defensores de uma proposta que
poderia ter comprometido as reformas chinesas prosperaram na década seguinte,
quando o mais difícil da transição já tinha sido feito.
O mecanismo dual de preços não deve ser a
única explicação para o sucesso chinês. O livro de Weber aponta para uma
orientação mais geral, de construir um sistema novo pelas margens do antigo,
que foi bem-sucedida. Na imagem espelhada do sucesso chinês a história também é
mais complexa: a correlação estatística entre terapia de choque e colapso é
quase toda gerada pelos casos de países que, no começo do processo, eram um só,
a União
Soviética. Desmoronamento estatal certamente deve ter sido parte da
história.
Mas Weber certamente poderia argumentar
que, se a URSS queria sobreviver, que escolhesse uma estratégia econômica
melhor.
PS: Delfim Netto aparece em um ponto decisivo
da história. Para quem quiser saber mais sobre as relações entre Brasil e
China, recomendo "Brazil-China relations in the 20th century", de
Maurício Santoro (Springer, 2022).
*Doutor em sociologia pela Universidade de
Oxford (Inglaterra) e autor de "PT, uma História".
Muito bom o artigo.
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