O Globo
Mundo prestará homenagens a Koudelka,
conterrâneo de Kundera que produziu o registro visual definitivo da invasão
soviética
Nesta semana o mundo perdeu o escritor
Milan Kundera. Nascido na antiga Tchecoslováquia, hoje República Tcheca, ele
teve a cidadania e o escrever cancelados em 1979 pelo regime comunista e morreu
aos 94 anos naturalizado francês, na Paris que o
acolheu. Admirado pelo estilo irônico, refinado e encharcado da melhor
literatura secular europeia, Kundera conseguiu manter distância da aclamação
instantânea alcançada com “A insustentável leveza do ser”. Foi um dos grandes
do século XX. Mas é seu embate decisivo com a censura que aqui merece registro
à parte, por trazer embutido um ensinamento universal.
O episódio ocorreu como prólogo da breve
“Primavera de Praga”
de janeiro de 1968, quando o stalinismo soviético entreabriu uma fresta para um
reformista de olhos tristonhos, Alexander Dubcek, ensaiar seu “socialismo de
rosto humano”. Kundera era membro dos mais ativos da União dos Escritores
checos e participara com contundência de um congresso a favor de maior
liberdade de expressão no país. Invocara a literatura como força vital para a
própria existência da nação e concluíra seu discurso assim:
— Qualquer interferência com a liberdade de pensamento e da palavra (...) é um escândalo neste século, uma correia a prender nossa literatura justo quando ela tenta dar um passo à frente.
Ao final dos debates, foi emitido um
manifesto. E com ele estava criado um dilema para os censores do “Comitê
Central de Publicações”: o jornal literário oficial, Literárni noviny, que
costumava publicar as íntegras dos congressos de escritores, deveria imprimir
resoluções que exigiam a extinção da censura? O que fazer com a fala de
Kundera? A solução foi convocar os líderes da União de Escritores para argumentarem
junto ao chefe do “Departamento Ideológico do Comitê Central”. E assim foi.
Kundera negociou linha por linha, debateu cada vírgula de cada frase. Segundo
relato do historiador cultural Robert Darnton, em “Censors at work: how states
shaped literature” ( 2014, sem edição brasileira), Kundera não podia se recusar
a negociar — a União dos Escritores contava com a publicação de suas demandas,
era uma ocasião única. Ele ganhou alguns pontos, perdeu outros, sempre
insistindo no absurdo de censurar um texto que protestava contra a censura. Ao
final, conseguira salvar boa parte do que escrevera. Mas, ao sair do encontro,
sentiu-se desprezível.
— Deixei que me fizessem de idiota... Toda
concessão é um compromisso sujo.
Pouco tempo depois, o Comitê Central do
partido telefonou para informar que o acordo não vingaria. Nada foi publicado.
“E Kundera se sentiu aliviado”, escreve Darnton.
Como se sabe, a efêmera primavera de ideias
e liberdades durou pouco. À 0h30 da noite de 20 para 21 de agosto de 1968,
tanques da então União Soviética e países associados no Pacto de Varsóvia
(Bulgária, Alemanha Oriental, Hungria e Polônia) começaram a rolar
Tchecoslováquia adentro. Em pouco tempo desfilavam sua força pela Praça
Venceslau, no coração de Praga, impondo ao país um silêncio que duraria duas
décadas.
Dentro de cinco semanas o mundo relembrará
o 55º aniversário daquele 21 de agosto. E prestará as devidas homenagens a um
conterrâneo de Kundera que produziu o registro visual definitivo da invasão
empunhando uma câmera alemã Exakta, de 35 mm.
Josef Koudelka tinha se formado em
engenharia aeronáutica, mas gostava mesmo era de fotografia. E as lentes
gostavam do olhar dele, pois acabou formando, junto com Henri Cartier-Bresson e
Robert Frank, a tríade magna da fotografia documental do século XX. Tinha 30
anos de idade e morava em Praga quando os tanques soviéticos arrombaram a
cidade. Koudelka registrou o que viu durante sete dias ininterruptos. Fez mais
de 5 mil imagens (exigente e irredutível, gosta de apenas dez), por vezes sob
condições físicas e emocionais extremas. A própria reposição e troca de filmes
já era uma dificuldade naqueles tempos de câmera analógica.
Até partir para o exílio em 1970, suas
fotos históricas da invasão contrabandeadas para o Ocidente eram publicadas com
o crédito anônimo de “PP”(Prague Photographer). Mas sabe que captou momentos de
valor universal.
— Neles — diz em entrevistas — não importa
quem é russo e quem é checo. O que importa é que um tem uma arma na mão, o
outro não.
Sua foto mais famosa mostra em
primeiríssimo plano o relógio no pulso de um braço masculino marcando a hora
exata da entrada dos tanques em Praga. Em segundo plano, a cidade deserta, com
a Praça Venceslau ao fundo. Não sentiu ódio contra os invasores.
— Eles não eram responsáveis por aquela
invasão. Eram jovens como eu, e vivíamos sob um mesmo sistema. Naquela época,
nenhum de nós era livre — explicou a Sean O’Hagan, do The Guardian.
Tornou-se um nômade no mundo, passou quase
duas décadas ao relento, fotografando de forma seminal a vida de errantes e
ciganos. Seu trabalho de anos sobre a muralha erguida por Israel na Cisjordânia
é um colosso. Cartier-Bresson o chamava de “o louco chamado Josef”. Hoje, aos
85 anos, vive entre Paris e Praga. É de loucos humanistas e da literatura universal
que se nutre também o mundo.
A colunista é um luxo só.
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