domingo, 16 de julho de 2023

Dorrit Harazim - Dois grandes

O Globo

Mundo prestará homenagens a Koudelka, conterrâneo de Kundera que produziu o registro visual definitivo da invasão soviética

Nesta semana o mundo perdeu o escritor Milan Kundera. Nascido na antiga Tchecoslováquia, hoje República Tcheca, ele teve a cidadania e o escrever cancelados em 1979 pelo regime comunista e morreu aos 94 anos naturalizado francês, na Paris que o acolheu. Admirado pelo estilo irônico, refinado e encharcado da melhor literatura secular europeia, Kundera conseguiu manter distância da aclamação instantânea alcançada com “A insustentável leveza do ser”. Foi um dos grandes do século XX. Mas é seu embate decisivo com a censura que aqui merece registro à parte, por trazer embutido um ensinamento universal.

O episódio ocorreu como prólogo da breve “Primavera de Praga” de janeiro de 1968, quando o stalinismo soviético entreabriu uma fresta para um reformista de olhos tristonhos, Alexander Dubcek, ensaiar seu “socialismo de rosto humano”. Kundera era membro dos mais ativos da União dos Escritores checos e participara com contundência de um congresso a favor de maior liberdade de expressão no país. Invocara a literatura como força vital para a própria existência da nação e concluíra seu discurso assim:

— Qualquer interferência com a liberdade de pensamento e da palavra (...) é um escândalo neste século, uma correia a prender nossa literatura justo quando ela tenta dar um passo à frente.

Ao final dos debates, foi emitido um manifesto. E com ele estava criado um dilema para os censores do “Comitê Central de Publicações”: o jornal literário oficial, Literárni noviny, que costumava publicar as íntegras dos congressos de escritores, deveria imprimir resoluções que exigiam a extinção da censura? O que fazer com a fala de Kundera? A solução foi convocar os líderes da União de Escritores para argumentarem junto ao chefe do “Departamento Ideológico do Comitê Central”. E assim foi. Kundera negociou linha por linha, debateu cada vírgula de cada frase. Segundo relato do historiador cultural Robert Darnton, em “Censors at work: how states shaped literature” ( 2014, sem edição brasileira), Kundera não podia se recusar a negociar — a União dos Escritores contava com a publicação de suas demandas, era uma ocasião única. Ele ganhou alguns pontos, perdeu outros, sempre insistindo no absurdo de censurar um texto que protestava contra a censura. Ao final, conseguira salvar boa parte do que escrevera. Mas, ao sair do encontro, sentiu-se desprezível.

— Deixei que me fizessem de idiota... Toda concessão é um compromisso sujo.

Pouco tempo depois, o Comitê Central do partido telefonou para informar que o acordo não vingaria. Nada foi publicado. “E Kundera se sentiu aliviado”, escreve Darnton.

Como se sabe, a efêmera primavera de ideias e liberdades durou pouco. À 0h30 da noite de 20 para 21 de agosto de 1968, tanques da então União Soviética e países associados no Pacto de Varsóvia (Bulgária, Alemanha Oriental, Hungria e Polônia) começaram a rolar Tchecoslováquia adentro. Em pouco tempo desfilavam sua força pela Praça Venceslau, no coração de Praga, impondo ao país um silêncio que duraria duas décadas.

Dentro de cinco semanas o mundo relembrará o 55º aniversário daquele 21 de agosto. E prestará as devidas homenagens a um conterrâneo de Kundera que produziu o registro visual definitivo da invasão empunhando uma câmera alemã Exakta, de 35 mm.

Josef Koudelka tinha se formado em engenharia aeronáutica, mas gostava mesmo era de fotografia. E as lentes gostavam do olhar dele, pois acabou formando, junto com Henri Cartier-Bresson e Robert Frank, a tríade magna da fotografia documental do século XX. Tinha 30 anos de idade e morava em Praga quando os tanques soviéticos arrombaram a cidade. Koudelka registrou o que viu durante sete dias ininterruptos. Fez mais de 5 mil imagens (exigente e irredutível, gosta de apenas dez), por vezes sob condições físicas e emocionais extremas. A própria reposição e troca de filmes já era uma dificuldade naqueles tempos de câmera analógica.

Até partir para o exílio em 1970, suas fotos históricas da invasão contrabandeadas para o Ocidente eram publicadas com o crédito anônimo de “PP”(Prague Photographer). Mas sabe que captou momentos de valor universal.

— Neles — diz em entrevistas — não importa quem é russo e quem é checo. O que importa é que um tem uma arma na mão, o outro não.

Sua foto mais famosa mostra em primeiríssimo plano o relógio no pulso de um braço masculino marcando a hora exata da entrada dos tanques em Praga. Em segundo plano, a cidade deserta, com a Praça Venceslau ao fundo. Não sentiu ódio contra os invasores.

— Eles não eram responsáveis por aquela invasão. Eram jovens como eu, e vivíamos sob um mesmo sistema. Naquela época, nenhum de nós era livre — explicou a Sean O’Hagan, do The Guardian.

Tornou-se um nômade no mundo, passou quase duas décadas ao relento, fotografando de forma seminal a vida de errantes e ciganos. Seu trabalho de anos sobre a muralha erguida por Israel na Cisjordânia é um colosso. Cartier-Bresson o chamava de “o louco chamado Josef”. Hoje, aos 85 anos, vive entre Paris e Praga. É de loucos humanistas e da literatura universal que se nutre também o mundo.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A colunista é um luxo só.