segunda-feira, 17 de julho de 2023

Felipe Moura Brasil - O verdadeiro massacre da cultura pelo poder

O Estado de S. Paulo

O legado de Milan Kundera serve de alerta contra o massacre da cultura pelo poder

“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.” A frase é dita por Mirek, em 1971, três anos após a ocupação soviética da Tchecoslováquia, para explicar aos amigos por que guarda seus “escritos comprometedores”, contidos em diário, correspondências e minutas de reuniões.

Os amigos apontam a imprudência de Mirek, que se convence, ao menos, de levar o material para “lugar seguro”, porque a Constituição “garante a liberdade de palavra, mas as leis punem tudo que pode ser qualificado de atentado à segurança do Estado”.

E “nunca se sabe quando o Estado vai começar a gritar que essa palavra ou aquela atentam contra a sua segurança”.

A situação é narrada em O livro do riso e do esquecimento, de 1978, primeiro romance escrito na França pelo tcheco Milan Kundera, exilado no país a partir de 1975 após perder o cargo de professor em sua terra natal. No ano seguinte à publicação da obra, na qual Gustav Husak é criticado como o “presidente do esquecimento”, instalado pelos russos no poder, o escritor perdeu também a cidadania tcheca, devolvida somente quatro décadas depois, em 2019.

“Se Franz Kafka é o profeta de um mundo sem memória, Gustav Husak é o seu construtor”, diz um trecho sobre o “massacre da cultura e dos intelectuais” e a perseguição de adversários políticos como um método de reescrever a história. “Acho muito significativo, sob esse ponto de vista, que Husak tenha mandado expulsar das universidades e dos institutos científicos 145 historiadores tchecos. (...) Em 1971, um desses historiadores, Milan Hübl (...) estava no meu apartamento” e disse:

“Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirara memória. Destroem-ses e us livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá uma outra cultura e lhes inventa uma outra História. Em seguida, o povo começa lentamente a esquecer oqueéeo que era. O mundo à sua volta o esquece ainda mais depressa.”

No Brasil, onde oes que cimentoéqu ase natural, ena atualidade, quando bolhas virtuais dividem o povoem fantasias políticas, nem é preciso tanto. Basta cooptar emissoras de TV e rádio, afastar jornalistas que lutam pela memória, cassar mandato de quem investigou ou condenou autoridades, anular processos e remover críticas a projetos de maior controle.

O legado de Kundera, que morreu em 11 de julho de 2023, serve de alerta contra o massacre da cultura pelo poder, mesmo quando ele se diz democrático.

Eu, Felipe, seguirei guardando meus escritos comprometedores.

 

3 comentários:

  1. Destaco do artigo::
    ■ " No Brasil, onde o esquecimento é quase natural, e na atualidade, quando bolhas virtuais dividem o povo em fantasias políticas, nem é preciso tanto. Basta cooptar emissoras de TV e rádio, afastar jornalistas que lutam pela memória, cassar mandato de quem investigou ou condenou autoridades, anular processos e remover críticas a projetos de maior controle.

    O legado de Kundera, que morreu em 11 de julho de 2023, serve de alerta contra o massacre da cultura pelo poder, mesmo quando ele se diz democrático. "

    Muito bom artigo de Felipe Moura, que ousa dizer o que pensa contra os populistas, tanto contra os ditos "de esquerda" como contra os ditos "de direita", quando tantos jornalistas que antes mostravam bem mais independência hoje vacilam, constrangidos por pressão de bolhas políticas.

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  2. Incrível que uma das bolhas que hoje constragem quem se apresenta sem carimbos ideológicos para a discussão política seja formada por gente que se diz democrática e que formava um grupo de ardorosos leitores de Milan Kundera em outro momento do Brasil.

    Estes, não assimilaram, não entenderam ou abandonaram as reflexões do escritor que antes leram e cultuaram, embora ainda o citem como referência ; por descompromisso com a democracia e suas essencialidades ou por ignorância, não têm coerência e apoiam os esfoladores dos sonhos de liberdade dos vizinhos de Milan Kudera, invadindo a Ucrânia com as mesmas tropas e tanques de guerra que em 1968 invadiram a República da Tchecoslováquia do escritor humanista.

    Estes desta bolha e seus líderes me lembram que não é apenas Bolsonaro quem constitui ameaça à democracia no Brasil e que não são apenas os bolsonaristas que constituem gado politico e existencial no sentido como adjetivado por Friedrich Nietzsche.

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