quarta-feira, 12 de julho de 2023

Wilson Gomes* - Democracia sempre, mas valores primeiro

Folha de S. Paulo

Sistema político, hoje querido, nunca teve todo o sucesso de crítica e de público que imaginávamos

Responda honestamente, para você o que é preferível? Ser governado pela esquerda ou governado democraticamente?

Uma sociedade próspera e com governos eficientes ou um Estado democrático? Uma sociedade em que são protegidos os valores certos ou uma sociedade em que o combinado fundamental que a todos obriga deriva tão somente de constituição liberal-democrata?

Neste vertiginoso século 21, há poucos consensos tão bem estabelecidos quanto a convicção de que é melhor viver sob um regime democrático. Todos amam a democracia, e a tal ponto que quando são, eventualmente, acusados de traí-la, reagem como se tivessem recebido um insulto.

Nem sempre houve esse consenso. Não faz muito tempo, a democracia não só não gozava dessa reputação, como de fato foi muitas vezes abandonada, desfigurada e substituída.

Ainda estão vivos muitos dos que viram quando uma parte relevante dos países do mundo foi desgarrado da democracia durante o turbulento século passado. A civilizadíssima Europa foi redemocratizada à força, na América Latina ditaduras militares caíram de podre depois de quebrar as economias dos países que as adotaram, o mesmo em outras partes do mundo.

Vivi sob uma ditadura até os meus 20 anos, enquanto meu pai, nascido em 1922, viveu sob duas delas. Isso sem contar o período de "desdemocratização" da era Jair Bolsonaro.

Em suma, a democracia, hoje bastante querida, nunca teve o sucesso de crítica e público que muitos imaginam.

Mesmo hoje, o consenso democrático revela-se menor quando examinado de perto. Prefere-se sempre a democracia, sim, mas o consenso vacila quando se aborda o interlocutor a partir das suas visões de mundo. Há esquerdistas, direitistas, liberais na economia e conservadores que acham a democracia o máximo, mas não mais importante do que os valores do seu segmento ideológico. O que produz alguns tipos de convicção democrática bastante discutíveis.

Começo com os agnósticos e indiferentes, que adotam doutrinas econômicas ou até mesmo jurídicas que não são propriamente antidemocráticas, mas para as quais os requisitos da democracia não são uma prioridade diante de valores como prosperidade ou eficiência na economia e na governança. Pressupõem que sociedades mais ricas tendem a ser menos desiguais, daí saltando a ideia de que autocracias podem ser toleráveis desde que entreguem riqueza, eficiência e qualidade de vida.

Se democracias oferecem o mesmo, melhor ainda, mas regime político bom seria regime economicamente eficaz.

A esquerda, por sua vez, jura que adora a democracia, mas, entre os valores democráticos e os do socialismo —superação da luta de classes e igualdade social—, muitos vacilam.

Na encruzilhada entre socialismo e democracia, cinde-se em diferentes esquerdas: de um lado os que são capazes de tolerar a ausência de igualdade e liberdade políticas, pedras angulares da democracia, desde que se tenha igualdade social; do outro, os que prezam muito a justiça social desde que feita em regime de liberdades.

O primeiro grupo viu-se constrangido a criar álibis para justificar por que preferem o socialismo à democracia. O mais comum é o argumento de que há duas democracias: a dos burgueses, em que a igualdade é só aparente, visto não ser igualdade social, e a verdadeira democracia, a que só um regime socialista é capaz de entregar, com igualdade social plena.

O socialismo seria a realização definitiva das aspirações democráticas por justiça social, embora historicamente nunca tenha funcionado em simbiose em regime de liberdades e direitos fundamentais.

Os ultraconservadores costumam confrontar os excelentes valores democráticos com valores ainda mais excelsos. Se o pentateuco, revelado, vale mais do que qualquer constituição secular, por que dobrar-se à democracia liberal? Por que viver sob democracia constitucional e não na lei de Deus?

De fato, nem a democracia política garante igualdade social, nem é regime transcendental, pela razão óbvia: não é um modo de produção econômica ou um sistema religioso.

Por outro lado, é inegável que democracia melhora o capitalismo e as religiões em Estados democráticos onde convivem, em virtude da pressão que a igualdade política exerce para produzir igualdade social e por forçar as religiões ao valor democrático da tolerância.

Resta o fato de que, se todo mundo gosta da democracia, há uma parte substancial da sociedade que situa muitas coisas antes e em lugar dela.

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

 

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