terça-feira, 1 de agosto de 2023

Luiz Schymura* - Uma reforma tributária complexa, porém necessária


Valor Econômico

É importante todo o esmero de nossos legisladores na montagem da legislação infraconstitucional da transição dos regimes e o governo deve trabalhar intensamente para evitar uma lista muito extensa de setores beneficiados com IVA reduzido

Em um país com extensão territorial continental, com população que supera a marca dos 200 milhões de habitantes e com expressiva desigualdade não só de renda, mas também educacional e cultural, como é o caso brasileiro, é muito difícil promover grandes mudanças institucionais. Afinal, as reivindicações da população são muitas e variadas, e, por isso, as forças políticas - representantes legítimas de agrupamentos sociais -, quando anteveem prejuízos a serem incorridos por seus representados, acabam se tornando agentes contrários às reformas. A estratégia passa a ser interditar o debate. Não à toa, modificações mais profundas nos marcos institucionais brasileiros levam, por vezes, décadas para serem concluídas. É necessário um longo período de negociação e amadurecimento.

Nessa linha, após muita discussão na busca da convergência, o Brasil dá sinais de que irá, finalmente, implementar uma profunda e abrangente reforma tributária. A expectativa é a de que, no primeiro momento, tenhamos uma considerável reforma do sistema tributário do consumo. De fato, como lembra meu colega Manoel Pires, a reforma dos tributos sobre consumo está mais madura no Brasil, tendo sido debatida por mais tempo, e já existe o modelo bem consolidado e experimentado por muitos países do imposto sobre valor adicionado (IVA). Por outro lado, as abordagens para a reforma dos impostos sobre a renda e patrimônio são bem menos consensuais, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

A PEC aprovada na Câmara no começo de julho - que hoje tramita no Senado Federal - introduz um IVA dual, nos moldes da reforma canadense, diferenciando a União dos Estados e municípios. O IVA dual será composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), da União, com a unificação do IPI e PIS-Cofins; e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de Estados e municípios, fundindo ICMS e ISS.

Em tese, esse “novo” IVA ajudará a mitigar as distorções causadas pelo nosso atual sistema de tributação.

Para começar, há atualmente uma elevada diferenciação na tributação de bens e serviços, sendo os primeiros muito mais taxados que os últimos. De fato, o “exagero” na tributação dos bens é prejudicial à competitividade do país, na medida em que estes estão mais sujeitos à concorrência internacional. Ao estabelecer os contornos para tornar mais equânime a tributação entre bens e serviços, o texto em tramitação nas Casas Legislativas também tem o condão de deflagrar uma baita política industrial, uma vez que desonera a indústria de transformação.

Além disso, dentre tantas distorções que nosso emaranhado arcabouço tributário fomenta, o elevado custo de conformidade e a propensão a litigar, bem como as decisões produtivas que ocorrem por conta da diferenciação tributária - sendo a guerra fiscal entre os Estados a mais notória -, são os destaques. Nesse contexto, como consta da PEC, a simplificação tributária e a cobrança do IVA dual no destino parecem dar conta do problema.

Há farta evidência empírica quanto à melhora em indicadores macroeconômicos devido à introdução do IVA. Em particular, um estudo de 2020 (de autoria de Bibek Adhikari) apontou ganhos de cerca de 8% no PIB por trabalhador avaliando 33 episódios de introdução do IVA mundo afora, chegando a quase 33% no caso de países de renda média-alta (grupo no qual o Brasil está inserido).

Embora a essência do modelo tributário que está em vias de ser aprovado seja consistente e, em linhas gerais, alinhado com as melhores práticas internacionais, o que ainda causa certa apreensão são os desafios associados à implementação da Reforma. Naturalmente, as mudanças propostas não serão implantadas de imediato. Durante a transição, o antigo e o novo regimes deverão operar em conjunto. Teremos um longo percurso até que o novo sistema esteja, finalmente, em plena operação.

Com isso, duas questões de escopo mais amplo suscitam preocupação. Primeiramente, no já intricado sistema tributário brasileiro hoje em vigor, adicionar mais um regime exigirá uma definição detalhada das regras da transição. Certamente, serão grandes os desafios à frente. Em termos objetivos, a agenda legislativa pós-aprovação da PEC sugere o ano de 2026 como o do início da transição, pois é necessário que algumas leis complementares sejam aprovadas, regulando diversos aspectos da reforma. Contudo, como lembra Manoel Pires, esse detalhamento é tão complexo que levanta o questionamento da suficiência de lei complementar. Na realidade, é possível que para a implementação efetiva da reforma também sejam necessárias mais etapas de aprovação de leis ordinárias e regulamentos.

Em segundo lugar, o fim do processo de transição para a CBS e o IBS não encerra a busca pela alíquota neutra, aquela que fará com que o novo sistema arrecade como proporção do PIB o mesmo que o atual. Esse processo de calibragem levará alguns anos e dependerá da aferição de outras variáveis, como a mudança dos níveis de elisão e evasão fiscal entre os dois regimes, como aponta meu colega Bráulio Borges. Quanto à alíquota final, a soma da CBS com o IBS que tem sido aventada pelos analistas é de 25%, que já é um nível elevado em comparações internacionais, porém há quem pense que venha a ser ainda maior, tornando-se de fato “a” alíquota padrão de IVA mais alta do planeta.

Em suma, a reforma tributária do consumo que se conseguiu delinear no Congresso Nacional traz pontos bastante positivos, resolvendo diversos gargalos de nosso sistema tributário. No entanto, dois pontos merecem cuidado e atenção redobrados. Primeiramente, é importante todo o esmero de nossos legisladores na montagem da legislação infraconstitucional que determinará o modus operandi da transição dos regimes. Não se pode deixar pontas soltas. Em segundo lugar, o governo deve trabalhar intensamente para evitar uma lista muito extensa de setores a serem beneficiados com IVA reduzido. Caso contrário, há o risco da alíquota final do IVA dual ficar tão alta que inviabilize o bom funcionamento do novo regime.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre

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