Tenho tentado aqui identificar as raízes
dos problemas de governabilidade e organização de nossa democracia representativa.
Há diversas camadas em que o problema se manifesta. A maior é a opção pelo
presidencialismo em meio a um quadro extremo de pulverização e fragmentação da
representação partidária no Congresso. Mas, nós, parlamentaristas brasileiros,
não podemos continuar chorando o leite derramado e devemos colocar as barbas de
molho, já que perdemos de goleada os plebiscitos sobre o sistema de governo em
1963 e 1993.
Outro plano problemático é a flacidez do
nosso sistema partidário. Raramente temos, entre os 30 partidos registrados no
TSE, exemplos de vida orgânica e densidade programática e ideológica. A
tradição é de partidos cartoriais, que servem apenas para mero registro de
candidaturas e não cultivam qualquer identidade associada a um projeto
estratégico de futuro de país. A democracia interna, via de regra, é rala. As
estruturas e os ritos institucionais são frágeis e provisórios. Isto pode ser
resolvido por uma lei ordinária que imponha regras democráticas para a tomada
de decisões internas quanto às posições políticas, inclusive sobre a gestão
financeira dos fundos partidário e eleitoral.
Mas o aspecto que me interessa discutir
hoje é a relação entre representados e representantes construída pelo sistema
eleitoral. O brasileiro não consegue falar sequer o nome do deputado em que
votou. Quem não sabe dizer o nome do seu representante é porque não acompanha,
fiscaliza, controla suas posições políticas. Há um princípio clássico da
democracia nascido em seu berço, a Inglaterra: o accountability. Não há uma
tradução perfeita para o português. Significa controle, fiscalização,
responsabilização, prestação de contas e transparência. No Brasil há um leve e
difuso controle social sobre os mandatos via imprensa e redes sociais. Mas sem
espelhar o necessário vínculo entre eleito e eleitor.
Isto não ocorre nos sistemas eleitorais
clássicos: o distrital puro onde o deputado é eleito num pequeno território e
tem os eleitores em seu calcanhar a cobrar, fiscalizar, opinar. É o sistema de
democracias avançadas como Inglaterra, França e EUA. Outros países têm o
sistema de lista partidária, onde o controle é sobre a organização coletiva.
Não se vota em nomes, mas nas ideias, nos programas e partidos. Se o partido vai
bem, é premiado na próxima eleição. Se seu desempenho foi ruim, o partido é
punido, perdendo votos e cadeiras no parlamento. Na Itália, na Espanha e em
Portugal funciona assim. Há o sistema distrital misto, que a Alemanha inventou
após a 2ª. Grande Guerra, fundindo os dois modelos clássicos, atenuando
defeitos e combinando qualidades. Apresentei a PEC do distrital misto na
reforma política de 2011, não saiu nem da comissão. Reapresentei no plenário na
reforma de 2015. Eram precisos 308 votos, conseguimos apenas 99. O poder
inercial do status quo é imenso e mudanças radicais não encontram vida fácil.
Com base nas fracassadas tentativas de 2011
e 2015 de implantar o voto distrital misto que ancora metade da representação
nos programas partidários e a outra metade na territorialização do voto nos
distritos eleitorais é que joguei as sementes da minha jabuticaba: o voto
nominal proporcional regionalizado.
O atual sistema eleitoral brasileiro é uma
jabuticaba de má qualidade, não existe igual em nenhum lugar do mundo. É caro
porque as campanhas se dão em espaços territoriais imensos como Minas Gerais,
São Paulo, Bahia, Pará, Rio Grande do Sul, Amazonas. Não gera vínculos entre o
eleitor e seu representante já que a votação é dispersa e a escolha do eleitor
é feita diante de uma lista com mais de mil nomes alternativos, o que não deixa
rastro, memória ou elos de ligação. O voto não está enraizado nem nos
princípios políticos-ideológicos (lista partidária) nem no território
(distrital). Não fortalece os partidos, porque a disputa é deslocada para
dentro das fronteiras partidárias. Você disputa contra seus semelhantes e não
contra seus adversários, o que não ocorre no distrital ou na lista. Não prepara
a formação de maiorias e minorias parlamentares já que no atual sistema é cada
um por si, o mandato é como se fosse uma conquista individual, descolada de
qualquer visão de futuro.
Com base neste diagnóstico, na rejeição da
maioria de parlamentares aos sistemas eleitorais clássicos e da necessidade de
uma proposta simples e palatável, propus nas reformas de 2013 e 2017 um sistema
original que mantinha todas as características do atual sistema
(proporcionalidade, voto no candidato, etc.), mas mudava uma única variável: o
território. Todas as regras atuais permaneceriam, no entanto, o estado de São
Paulo, por exemplo, ao invés de eleger 70 deputados federais em seu imenso
território, com todos os candidatos disputando quase 35 milhões de votos, seria
dividido em 10 regiões com sete cadeiras em disputa em cada região com uma
média de 3,5 milhões de eleitores. Os partidos apresentariam 10 chapas
regionais e as cadeiras seriam distribuídas pelo voto proporcional. Minas
Gerais teria oito circunscrições eleitorais, Rio de Janeiro, sete, Bahia, seis,
Rio Grande do Sul, cinco, até chegarmos nos estados menores que teriam duas
regiões eleitorais, com quatro cadeiras em disputa em cada uma delas. Em 2013,
a Comissão de Estudos aprovou meu texto e o então presidente da Câmara,
Henrique Eduardo Alves, chegou a se empolgar com a ideia. Mas o líder do PMDB
na época, deputado Eduardo Cunha, queria o chamado “Distritão” e liderou um
amplo bloco político e arquivar a proposta. Em 2017, a reforma teve fôlego
menor e foram aprovados alguns avanços importantes (proibição das coligações
proporcionais e cláusula de desempenho partidário), mas de impacto
transformador mais tímido.
O pior inimigo do bom é o ótimo. Os
sistemas clássicos não têm viabilidade de aprovação no Congresso Nacional. A
boa e inovadora jabuticaba brasileira baratearia as campanhas ao reduzir o
território de disputa, fortaleceria a unidade dos partidos já que seria gerada
solidariedade e não espírito de competição entre os candidatos de um mesmo
partido nas diversas regiões eleitorais, as emendas parlamentares seriam mais
bem distribuídas no continental território brasileiro, e, principalmente, os
eleitores estariam mais próximos de seus representantes e poderiam controlá-los
melhor e julgar suas posições. Hoje as decisões políticas nacionais têm muito a
ver com os bastidores de Brasília e pouco a ver com o pulsar do sentimento
popular nas ruas deste imenso país.
Quem sabe a atual Câmara dos Deputados não
queira plantar essa boa jabuticabeira que poderá dar bons frutos para a
democracia brasileira?
*Economista
MARCUS PESTANA, O 'JABUTI CABE'
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