sábado, 12 de agosto de 2023

Marcus Pestana* - Uma jabuticaba de boa qualidade

O grande jornalista e ex-deputado federal, pivô da crise que resultou no AI-5, em 1968, Márcio Moreira Alves, cunhou certa vez uma frase que ficou famosa “tudo aquilo que só existe no Brasil e não é jabuticaba, é bobagem”. Anos mais tarde, o professor e ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, escreveu um “Desagravo às jabuticabas”, associando a metáfora ao não menos famoso “complexo de vira-latas”, descrito por Nelson Rodrigues, para tipificar o nosso arraigado complexo brasileiro de inferioridade. Disse Everardo Maciel: “É irracional não acolher experiências bem-sucedidas de outros países, tanto quanto é medíocre e ingênuo refugar soluções apenas porque são, na versão difamatória, jabuticabas”. Digo isso, porque falarei de uma jabuticaba que julgo de boa qualidade, que plantei no Congresso Nacional na época em que, com muito orgulho, representei o povo mineiro.

Tenho tentado aqui identificar as raízes dos problemas de governabilidade e organização de nossa democracia representativa. Há diversas camadas em que o problema se manifesta. A maior é a opção pelo presidencialismo em meio a um quadro extremo de pulverização e fragmentação da representação partidária no Congresso. Mas, nós, parlamentaristas brasileiros, não podemos continuar chorando o leite derramado e devemos colocar as barbas de molho, já que perdemos de goleada os plebiscitos sobre o sistema de governo em 1963 e 1993.

Outro plano problemático é a flacidez do nosso sistema partidário. Raramente temos, entre os 30 partidos registrados no TSE, exemplos de vida orgânica e densidade programática e ideológica. A tradição é de partidos cartoriais, que servem apenas para mero registro de candidaturas e não cultivam qualquer identidade associada a um projeto estratégico de futuro de país. A democracia interna, via de regra, é rala. As estruturas e os ritos institucionais são frágeis e provisórios. Isto pode ser resolvido por uma lei ordinária que imponha regras democráticas para a tomada de decisões internas quanto às posições políticas, inclusive sobre a gestão financeira dos fundos partidário e eleitoral.

Mas o aspecto que me interessa discutir hoje é a relação entre representados e representantes construída pelo sistema eleitoral. O brasileiro não consegue falar sequer o nome do deputado em que votou. Quem não sabe dizer o nome do seu representante é porque não acompanha, fiscaliza, controla suas posições políticas. Há um princípio clássico da democracia nascido em seu berço, a Inglaterra: o accountability. Não há uma tradução perfeita para o português. Significa controle, fiscalização, responsabilização, prestação de contas e transparência. No Brasil há um leve e difuso controle social sobre os mandatos via imprensa e redes sociais. Mas sem espelhar o necessário vínculo entre eleito e eleitor.

Isto não ocorre nos sistemas eleitorais clássicos: o distrital puro onde o deputado é eleito num pequeno território e tem os eleitores em seu calcanhar a cobrar, fiscalizar, opinar. É o sistema de democracias avançadas como Inglaterra, França e EUA. Outros países têm o sistema de lista partidária, onde o controle é sobre a organização coletiva. Não se vota em nomes, mas nas ideias, nos programas e partidos. Se o partido vai bem, é premiado na próxima eleição. Se seu desempenho foi ruim, o partido é punido, perdendo votos e cadeiras no parlamento. Na Itália, na Espanha e em Portugal funciona assim. Há o sistema distrital misto, que a Alemanha inventou após a 2ª. Grande Guerra, fundindo os dois modelos clássicos, atenuando defeitos e combinando qualidades. Apresentei a PEC do distrital misto na reforma política de 2011, não saiu nem da comissão. Reapresentei no plenário na reforma de 2015. Eram precisos 308 votos, conseguimos apenas 99. O poder inercial do status quo é imenso e mudanças radicais não encontram vida fácil.

Com base nas fracassadas tentativas de 2011 e 2015 de implantar o voto distrital misto que ancora metade da representação nos programas partidários e a outra metade na territorialização do voto nos distritos eleitorais é que joguei as sementes da minha jabuticaba: o voto nominal proporcional regionalizado.

O atual sistema eleitoral brasileiro é uma jabuticaba de má qualidade, não existe igual em nenhum lugar do mundo. É caro porque as campanhas se dão em espaços territoriais imensos como Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Pará, Rio Grande do Sul, Amazonas. Não gera vínculos entre o eleitor e seu representante já que a votação é dispersa e a escolha do eleitor é feita diante de uma lista com mais de mil nomes alternativos, o que não deixa rastro, memória ou elos de ligação. O voto não está enraizado nem nos princípios políticos-ideológicos (lista partidária) nem no território (distrital). Não fortalece os partidos, porque a disputa é deslocada para dentro das fronteiras partidárias. Você disputa contra seus semelhantes e não contra seus adversários, o que não ocorre no distrital ou na lista. Não prepara a formação de maiorias e minorias parlamentares já que no atual sistema é cada um por si, o mandato é como se fosse uma conquista individual, descolada de qualquer visão de futuro.

Com base neste diagnóstico, na rejeição da maioria de parlamentares aos sistemas eleitorais clássicos e da necessidade de uma proposta simples e palatável, propus nas reformas de 2013 e 2017 um sistema original que mantinha todas as características do atual sistema (proporcionalidade, voto no candidato, etc.), mas mudava uma única variável: o território. Todas as regras atuais permaneceriam, no entanto, o estado de São Paulo, por exemplo, ao invés de eleger 70 deputados federais em seu imenso território, com todos os candidatos disputando quase 35 milhões de votos, seria dividido em 10 regiões com sete cadeiras em disputa em cada região com uma média de 3,5 milhões de eleitores. Os partidos apresentariam 10 chapas regionais e as cadeiras seriam distribuídas pelo voto proporcional. Minas Gerais teria oito circunscrições eleitorais, Rio de Janeiro, sete, Bahia, seis, Rio Grande do Sul, cinco, até chegarmos nos estados menores que teriam duas regiões eleitorais, com quatro cadeiras em disputa em cada uma delas. Em 2013, a Comissão de Estudos aprovou meu texto e o então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, chegou a se empolgar com a ideia. Mas o líder do PMDB na época, deputado Eduardo Cunha, queria o chamado “Distritão” e liderou um amplo bloco político e arquivar a proposta. Em 2017, a reforma teve fôlego menor e foram aprovados alguns avanços importantes (proibição das coligações proporcionais e cláusula de desempenho partidário), mas de impacto transformador mais tímido. 

O pior inimigo do bom é o ótimo. Os sistemas clássicos não têm viabilidade de aprovação no Congresso Nacional. A boa e inovadora jabuticaba brasileira baratearia as campanhas ao reduzir o território de disputa, fortaleceria a unidade dos partidos já que seria gerada solidariedade e não espírito de competição entre os candidatos de um mesmo partido nas diversas regiões eleitorais, as emendas parlamentares seriam mais bem distribuídas no continental território brasileiro, e, principalmente, os eleitores estariam mais próximos de seus representantes e poderiam controlá-los melhor e julgar suas posições. Hoje as decisões políticas nacionais têm muito a ver com os bastidores de Brasília e pouco a ver com o pulsar do sentimento popular nas ruas deste imenso país.

Quem sabe a atual Câmara dos Deputados não queira plantar essa boa jabuticabeira que poderá dar bons frutos para a democracia brasileira? 

*Economista

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