Folha de S. Paulo
Deixasse esse único legado, bastaria para ser
a maior do STF pós-1988
O STF escalou,
na última década, todo um Himalaia de abusividade ética e descompostura. E
encontrou em Rosa Weber o
seu maior contraponto de integridade. E em Edson Fachin o
seu parceiro. Só restou isso para entender que nada daquilo é natural. Que o
normal do STF não é aceitável em corte de Justiça nenhuma do mundo. Que
interpelar e conter o alpinismo transviado de juízes é uma urgente causa democrática.
O descalabro ético afeta a capacidade de o
tribunal cumprir seu papel de defesa da Constituição. Interessa a forças não
republicanas e retrógradas do país. Deve ser denunciado pelo jornalismo
responsável, pela crítica acadêmica e pela sociedade civil. Pois não o será
pela profissão jurídica servil nem pela advocacia lobista, que brinda a
magistocracia nos jardins do Lago Sul, nos teatros de Lisboa, nos terraços da
Sardenha.
Uma corte que revogou a noção de conflito de interesses; em que ministro-empresário pede patrocínio a agentes econômicos, emprega magistocratas, constrói rede de influência política; em que filhos e esposas de ministros oferecem porta de acesso à corte por meio de honorários-pedágio, a taxa do parente, sem a qual se tornou difícil advogar em Brasília; em que ministros fazem negociações de constitucionalidade em público e frequentam coquetéis do poder privado.
Rosa Weber denunciou o descalabro não pela
palavra, mas pelo exemplo.
Há compromissos que ministros do STF poderiam
assumir para uma revolução na corte. Em
2019, imaginei um pacto por autorrespeito e rituais de imparcialidade; por
discrição e compostura fora dos autos; por práticas republicanas contra o
patrimonialismo judicial; por democratização do Judiciário e combate a
privilégios.
Rosa Weber é o maior símbolo de compromisso
com esse pacto no STF pós-1988. Estabeleceu um parâmetro ético e definiu onde
deve ser colocado o sarrafo. Enquanto outros ministros aceitam convite de
qualquer botequim para palestrar em Nova York, como se a audiência pagante
estivesse lá para escutar as ideias da palestra, Rosa não negocia.
Sua discrição não é só traço de
personalidade, mas opção pelo comportamento judicial apropriado ("judicial
propriety"). Um pesadelo para repórteres que se acostumaram ao acesso
fácil a ministros boquirrotos sabendo do desvio ético por trás da fofoca em
off, Rosa Weber não vulgarizou seu papel público. Deixasse esse único legado,
bastaria, mas deixou mais.
Suas contribuições jurisprudenciais e
institucionais merecem respeito. Em seu curto mandato na presidência do STF e
do CNJ, que mal completou um ano, foi autora de mudanças transformadoras.
Rosa Weber propôs e aprovou no plenário do
STF resolução que limitou o uso estratégico do pedido de vista para obstrução
individual. No CNJ, propôs e foi derrotada em resolução que tentava limitar
as festas da Justiça, as palestras remuneradas (direta ou indiretamente)
sem transparência e a promiscuidade de sempre.
Mas conseguiu, na última semana de seu
mandato, aprovar resolução que cria
paridade de gênero para promoção de juízes a tribunais (pesadelo
do quase-desembargador paulista).
Uma mudança revolucionária em tribunais que, em média, nunca tiveram mais que
20% de desembargadoras.
Na sua condução da pauta do STF, tirou das
gavetas casos urgentes do PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira),
como o marco temporal e o porte de drogas. Na jurisprudência do STF, esteve do
lado vencedor em todos os casos que o tribunal celebra como progresso em
direitos fundamentais. Na jurisprudência constitucional trabalhista, foi a mais
arejada voz contra a precarização do trabalho.
Seu ímpeto pela reconstrução do plenário
destruído em 8 de janeiro foi seu maior gesto de responsabilidade política.
O voto
no caso do aborto é seu maior legado intelectual, e passa a integrar o
cânone global sobre o tema. Nesse voto, homens poderão aprender o que é a
dimensão social da maternidade, justiça reprodutiva e cidadania feminina.
Que Lula cogite
trocar essa mulher por membro do centrão magistocrático mostra que ele não
entendeu com quem está lidando. Nem a esfinge
lava-jatista. Depois de tudo.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC
Texto excepcional. Como é bom ler um texto com saber jurídico e filosófico, claro, muito bem escrito e argumentado. Muitos outros colunistas apenas querem nos vender seus preconceitos ou suas ideologias, disfarçadas de análises (falo especialmente de Magnoli, Rosenfield, Sardenberg e Waack, entre outros). Parabéns ao autor e ao blog por divulgar tanta qualidade!
ResponderExcluirO colunista é excelente.
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