Correio Braziliense
O Exército como poder moderador é um mito
autoritário da nossa República positivista. Suas intervenções nunca tiveram um
caráter moderador, quase sempre afrontaram a democracia
O desfile cívico-militar realizado ontem,
tendo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como comandante supremo das Forças
Armadas, ao contrário do que aconteceu nos seus dois mandatos anteriores, não
foi um evento trivial. É carregado de representação política, diante do que
ocorreu nas Forças Armadas durante o governo Bolsonaro e dos episódios de 8 de
janeiro.
Do ponto de vista formal, seguiu o cerimonial: com a faixa presidencial, Lula chegou ao desfile em carro aberto, em pé, acompanhado da primeira-dama, Janja, sem nenhum incidente. Na tribuna de honra, estava ao lado do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, além dos comandantes militares, que posaram para foto.
Os comandantes do Exército, Tomás Ribeiro
Paiva; da Aeronáutica, Marcelo Kanitz Damasceno; e da Marinha, Marcos Sampaio
Olsen, realizam um sincero esforço de apaziguamento dos quarteis, com base na
disciplina e na hierarquia, mas o objetivo principal é criar mecanismos que
afastem da tropa definitivamente os militares que se envolverem com a política.
O ponto de fricção é a situação dos que se
envolveram e cometeram não-conformidades durante o governo Bolsonaro. Além do
generalizado desvio de função, há os casos de envolvimento com improbidades
administrativas e nos atos golpistas de 8 de janeiro.
É um erro supor que tudo se resolverá com
um ajuste de contas interna corporis. O Congresso e a sociedade não podem se
omitir em relação à política de defesa, que não é devidamente discutida, a não
ser em eventos esporádicos. A Comissão Mista de Controle dos Serviços de
Inteligência do Congresso, por exemplo, nunca cumpriu efetivamente o seu papel.
A responsabilidade maior não é dos
militares, é do Congresso. O ex-ministro da Defesa Raul Jungmann cansou de
dizer que a questão militar no Brasil é um problema da sociedade e de seus
representantes eleitos. É preciso definir claramente a política de Defesa
Nacional, o papel das Forças Armadas, suas relações com a sociedade e os
limites da participação dos militares da ativa na administração pública.
Partido fardado
Subestima-se a força da História. As
intervenções militares na vida política republicana foram frequentes: 1889
(Proclamação da República), 1893 (Revolta da Armada), 1922 (os 18 do Forte),
1924 (Revolução em São Paulo e início da Coluna Prestes), 1930 (a Revolução),
1935 (a Intentona), 1937 (o Estado Novo), 1945 ( a deposição de Vargas), 1954
(suicídio de Getúlio), 1954 (Memorial dos coronéis), 1955 (a “Novembrada”,
deposição de Carlos Luz e Café Filho), 1956 (Jacareacanga), 1959 (Aragarças),
1961 (tentativa de impedimento de Goulart), 1963 (revolta dos sargentos), 1964
(deposição de Goulart), 1968 (AI-5).
O Exército como poder moderador é um mito
autoritário da nossa República positivista. Suas intervenções nunca tiveram um
caráter moderador, quase sempre afrontaram ou atalharam a democracia. A maioria
foi derrotada. Quando vitoriosas, arrastaram a cúpula militar para aventuras
políticas e resultaram em regimes autoritários. Atos institucionais, fechamento
do Congresso, cassação de mandatos e decretos-lei nunca tiveram papel
moderador.
O ex-presidente Jair Bolsonaro ressuscitou
o “partido fardado”, que fracassou como gestor público, principalmente no caso
da Saúde. Não conseguiu arrastar para seus propósitos a maioria da cúpula das
Forças Armadas, mas envenenou corações e mentes nos quarteis com seu saudosismo
autoritário. O fracasso da tentativa de golpe de 8 de janeiro foi o naufrágio
de um passado que buscava o regresso.
No contexto de sucessivas derrotas
eleitorais do regime militar, a hierarquia matou o “partido fardado”. A lei de
Castelo Branco sobre as promoções e o decreto-lei da “expulsória” consagraram o
princípio do chefe. A demissão do general Sylvio Frota do Ministério do
Exército pelo presidente Ernesto Geisel foi o seu funeral.
Alguns mais radicais ainda tentaram uma
reação, no governo Figueiredo, inclusive por meio de atentados terroristas,
como a bomba do Rio Centro, no Rio de Janeiro, mas fracassaram. A partir da
eleição de Tancredo Neves, em 1985, os governos civis não mais precisaram se
preocupar com os militares e sua visão da ordem, nem com a preservação dos
valores castrenses.
Até o general Eduardo Villas-Boas, no
comando do Exército, apostar na ressureição do “partido fardado” pela via
eleitoral, por meio da candidatura de Jair Bolsonaro, cujo governo contou com a
forte presença de generais da reserva e da ativa no Palácio do Planalto. Deu no
que deu.
Alguns se deram conta da armadilha em que
estavam e se opuseram aos rumos tomados. Foram defenestrados, inclusive o
ministro da Defesa e os três comandantes militares, mas ajudaram a defender a
democracia nos bastidores da caserna.
O “partido fardado” esbarrou na existência
de leis e regulamentos, além de uma cadeia de comando constituída por critérios
profissionais de antiguidade e de meritocracia. E, sobretudo, na resistência
dos demais poderes, sobretudo o Supremo Tribunal Federal (STF), e da sociedade
civil organizada.
Fato.
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