domingo, 24 de setembro de 2023

Samuel Pessôa - O que não fazer com a política fiscal

Folha de S. Paulo

Antecipar receitas de partilha lembra operações que contribuíram para quebra do Banespa

Há pouco, o Congresso Nacional aprovou o novo arcabouço fiscal. O desenho da regra está correto, apesar de ela ser insuficiente. A insuficiência do arcabouço deve-se ao elevado déficit vigente no ponto de partida. Em 2023, o déficit será da ordem de 1% do PIB.

O déficit deve-se ao aumento permanente do gasto, fruto da aprovação da emenda constitucional da transição, no fim de 2022. A aprovação dessa emenda contou com forte apoio da opinião pública.
A estratégia da Fazenda tem sido buscar a elevação da carga tributária por meio de uma série de medidas de combate ao planejamento tributário e do aproveitamento de novas bases tributárias.

Fazem parte do esforço da Fazenda: a volta do voto de qualidade da Fazenda no Carf (tratei do tema na coluna de 3 de junho); a tributação dos fundos fechados no Brasil e no exterior; uma melhor definição de preço de transferência das empresas na exportação de commodities para subsidiárias no exterior; limites para que incentivos de governos estaduais às empresas corroam a base tributária do IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), ambos federais; crédito de ICMS no pagamento de PIS e Cofins; e o fim do pagamento de dividendos na forma de JCP (juros sobre o capital próprio).

Adicionalmente, a Fazenda deseja tributar as importações de pequeno valor e os jogos eletrônicos. A Fazenda aposta que essas medidas consigam arrecadar recorrentemente algo como 1,8% do PIB. Contas mais conservadoras do mercado apostam em uma receita recorrente da ordem de 0,8% do PIB. Saberemos somente em dois ou três anos o impacto permanente das medidas.

Dado que Lula resolveu iniciar seu terceiro mandato com o pé no acelerador do gasto, é possível que o piso da meta de primário de 2024, um déficit de 0,25% do PIB, não seja atingido.

O governo tem tratado do tema. Além de todas as medidas que elenquei, há outra possibilidade: a antecipação da receita de exploração de petróleo no regime de partilha. Essa operação é ruim. Em nada ajuda e pode atrapalhar muito.

A política fiscal tem dois impactos diretos sobre o equilíbrio macroeconômico. Primeiro, pode ser expansionista ou contracionista, e, portanto, injetar ou retirar demanda sobre o mercado de bens e serviços da economia. Segundo, é o instrumento disponível ao formulador da política econômica para influenciar na dinâmica da dívida pública.

A antecipação de receita da partilha representa uma troca patrimonial. É próxima de uma operação de privatização. A União abre mão de uma receita futura por uma receita hoje. A propriedade sobre um ativo da União muda de mãos. A operação não altera os fluxos de gastos e receitas. Não altera a postura —se expansionista ou contracionista— da política fiscal.

A antecipação tampouco altera a dinâmica do endividamento público. Em qualquer simulação de dívida, os ganhos futuros com a partilha já foram incorporados. É possível que o deságio que o setor privado cobre do setor público para antecipar a receita seja maior do que o implícito no custo de rolagem da dívida pública. Nesse caso, a antecipação representará uma piora do endividamento.

Antecipar a receita da partilha lembra muito as operações de antecipação de receita orçamentária (ARO) praticadas por Orestes Quércia em 1990 e que contribuíram para a quebra do antigo Banespa.

O arcabouço fiscal elaborado pela Fazenda e aprovado pelo Congresso Nacional considera a possibilidade do não atingimento da meta de superávit primário. A Fazenda precisa continuar a tocar a agenda de elevação da carga tributária. Mas com persistência e sem artificialismos.

Atingir a meta de primário em 2024 com uso de subterfúgios contábeis não é bom. Melhor não atingir a meta e deixar o arcabouço fiscal funcionar normalmente.

 

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