sábado, 7 de outubro de 2023

Carlos Alberto Sardenberg - Ora, a Constituição

O Globo

O salário mínimo constitucional quebraria as empresas privadas e todos os níveis de governo

Data venia, desculpa qualquer coisa e perdão pelas palavras, mas a Constituição Cidadã foi um desastre econômico. Gerou uma versão estatizante e criou direitos e benefícios que simplesmente não podem ser cumpridos.

O salário mínimo é inconstitucional desde que a Carta Magna foi aprovada, em 1988. Diz lá que é direito dos trabalhadores urbanos e rurais um “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”.

Considerem uma família de quatro pessoas, casal e dois filhos, morando no Rio ou em outra região metropolitana, e está na cara que o valor atual, R$ 1.320, não dá.

Qual seria o valor constitucional? O Dieese faz o cálculo todos os meses. Para setembro último, a estimativa alcança exatos R$ 6.280,93 — ou 4,75 vezes o efetivamente pago a trabalhadores, aposentados do INSS (26,2 milhões) e aos que recebem o Benefício de Prestação Continuada (5,5 milhões).

Qualquer um pode, pois, entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) e pedir que o STF corrija a distorção. Mas ninguém propõe essa medida a sério. E, se fosse proposta, ficaria dormindo nas gavetas de Suas Excelências. Por óbvio: o mínimo constitucional quebraria as empresas privadas e todos os níveis de governo. Só o INSS teria um gasto adicional absurdo de R$ 130 bilhões por mês.

Mais: se a loucura fosse concretizada, provocaria um surto de hiperinflação e o endividamento do governo. A inflação desvalorizaria o novo mínimo, que logo se tornaria de novo inconstitucional. E a dívida pública provocaria um aumento nos juros, tornando o crédito inviável. Recessão.

Eis o ponto: no caso do mínimo, a Constituição Cidadã não se aplica.

Também não se aplica na saúde. A Carta é explícita, no artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Todo brasileiro, portanto, tem o direito de ser atendido com a melhor medicina, de graça. Por isso, aliás, se definiu o Sistema Único de Saúde, SUS. Para os constituintes, toda a prestação de saúde seria estatal, socializada. Só não ficou assim porque, ao final da tramitação, se fizeram umas contas e se verificou que o governo não teria dinheiro para estatizar e manter todo o sistema privado.

Assim, em caráter secundário, a Constituição autorizou serviços privados de saúde, que deveriam ser isso mesmo, suplementares, coisa pequena. Mais de 45 milhões brasileiros recorrem a esse sistema dito secundário, basicamente pagando seguro e planos de saúde.

Tanto o sistema público quanto o privado sofrem restrições econômicas. Claro. Há remédios e tratamentos que, universalizados, quebrariam os dois sistemas. Mas, como a Constituição garante o direito fundamental, as pessoas vão ao Judiciário, que obriga governo e seguradoras privadas a custear o que for pedido. A judicialização torna-se, assim, um custo generalizado. O SUS acaba subfinanciado, e o setor privado fica cada vez mais inacessível. A Constituição também não se aplica aqui.

Mais. No artigo 5º, a Carta garante “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Os médicos executados no Rio não tiveram garantia de direitos à vida, à liberdade e à segurança.

A Constituição consagrou a democracia, é libertária na política e nos costumes — um enorme avanço. Mas criou utopias, miragens e desequilíbrios econômicos e sociais, de modo que o sistema é levado a tolerar, digamos, situações inconstitucionais. Parece que basta declarar o direito, seja ou não cumprido na real.

Não foi por acaso que a Carta precisou de mais de 130 emendas, mesmo já tendo começado com uns 250 artigos. E ainda não ficou adequada.

 

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