O Estado de S. Paulo
Netanyahu se associa a ultraortodoxos e religiosos que negam aos palestinos o direito de existir
As terríveis cenas que assistimos nos últimos
dias e o imensurável sofrimento de civis dificultam qualquer análise sóbria
sobre os ataques terroristas do Hamas no contexto mais amplo do conflito
israelense-palestino. No momento em que precisamos de humanidade, a frieza da
geopolítica soa demasiadamente desumana. Mas é fundamental que alguns elementos
desse complexo quebra-cabeças sejam discutidos.
Primeiro: estamos falando de uma disputa
entre dois projetos nacionais em larga medida excludentes. Ainda que muitos
israelenses e palestinos sejam a favor da existência de dois Estados para os
dois povos, a radicalização de ambas as sociedades privilegia hoje o
entendimento de que a sobrevivência de um povo depende da eliminação do outro.
Após 15 anos no poder, o premiê, Binyamin
Netanyahu, associa-se, cada vez mais, com nacionalistas religiosos e
ultraortodoxos que negam aos palestinos o direito de existir.
Governando Gaza com mão de ferro desde 2006, o grupo extremista Hamas defende que a Palestina só será livre quando Israel desaparecer. O colonialismo de alguns anda de mãos dadas com o terrorismo de outros.
Essas posições não são necessariamente
majoritárias, mas refletem a dinâmica do poder local. Políticos israelenses de
centro e de esquerda, geralmente mais abertos às negociações de paz com os
palestinos, encontram dificuldade de formular uma agenda que atenue o medo do
cidadão comum. Ao negarem uma lógica de segurança a qualquer custo, perdem
espaço político.
PARALISIA. O mesmo ocorre entre os grupos em
Gaza e na Cisjordânia. A Autoridade Palestina, fruto das conversas com Israel
sobre a criação de um Estado palestino (que completam três décadas), tem sido
incapaz de dar a seu povo qualquer esperança de independência. Os anos de
paralisia política custaram-lhe legitimidade e força, abrindo caminho para o
radicalismo.
Vale também ressaltar, como segundo ponto,
que o conflito se inscreve num quadro geopolítico mais amplo. A força militar
do Hamas vem do Irã, um dos atores mais poderosos da região. Opondo-se ao regime
iraniano temos a Arábia Saudita, que vem dando passos concretos, mediados pelos
EUA, de aproximação com Israel.
A agressão do Hamas, portanto, pode ser
compreendida como uma tentativa iraniana de romper o eixo saudita-israelense.
Como o Irã também abastece militarmente o Hezbollah, grupo xiita que controla o
sul do Líbano, não surpreendem os ataques contra Israel vindos da fronteira
libanesa.
O atual quadro poderá comprometer não só a
aproximação entre Arábia Saudita e Israel, como jogar por terra os esforços
diplomáticos americanos de contenção do Irã na região. Esse é um desafio ao
governo de Joe Biden, que enfrentará uma eleição dura no próximo ano, com
Donald Trump liderando as pesquisas.
Buscando reduzir as tensões entre israelenses
e palestinos está a Turquia, de Recep Tayyip Erdogan. Faz alguns anos que os
turcos desejam assumir mais protagonismo na geopolítica do Oriente Médio. Hoje,
buscam fazê-lo em contraposição aos interesses iranianos e sauditas,
beneficiando-se da interlocução que possuem com Israel e com o Hamas.
EXTREMISMO. Mas esse será só o primeiro passo
de um processo muito mais complicado. Esse é o terceiro ponto: enquanto
Netanyahu e seus aliados de extrema direita estiverem no poder, a única
linguagem na relação com os palestinos será a do conflito. A oposição já
sinalizou a possibilidade de um governo de união nacional, mas que dependerá
dos rumos da guerra. Se Netanyahu tiver respaldo popular, essa hipótese se
esvai.
O mesmo vale para os palestinos. Enquanto a
Autoridade Palestina, de Mahmoud Abbas, não conseguir retomar as conversas para
a criação de um Estado palestino, o Hamas e outros grupos extremistas seguirão
dominando a discussão. Sua única linguagem, como podem imaginar, é a do
conflito.
É importante, por fim, olharmos para o futuro
em busca de uma solução. Ela passa pelo restante do mundo, e o Brasil possui
uma posição privilegiada nesse sentido. Por sua trajetória de equilíbrio frente
ao tema, dialoga bem com Israel e com a Autoridade Palestina. A partir da
presidência do Conselho de Segurança da ONU, o País será fundamental para
buscar medidas coletivas que interrompam as agressões.
A solução do conflito passa pelo restante do mundo,
e o Brasil possui uma posição privilegiada.
A diplomacia brasileira tem de atuar de
maneira estratégica e resoluta em defesa da paz e da solução de dois Estados. A
recente expansão do Brics, com a entrada de sauditas e iranianos, confere ao
Brasil oportunidade única para resgatar as vias de diálogo. Se Lula quer deixar
um grande legado diplomático em seu terceiro mandato, esse pode ser um caminho,
que deverá ser perseguido com sabedoria e equilíbrio.
*Guilherme Casarões Cientista político e
professor da FGV-EAESP
Perfeito!
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