quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Martin Wolf* - A pior ameaça à expansão da China é política

Valor Econômico

A pergunta ainda mais relevante é se a China ultrapassou o ponto no qual a relação entre o Partido Comunista e o capitalismo funciona

Três colunas recentes perguntavam se as altas aceleradas do Produto Interno Bruto (PIB) e do PIB per capita da China estariam ou não chegando ao fim, como muitos acreditam (ou esperam). A primeira argumentou que a China tem potencial para crescer aceleradamente por ser ainda tão pobre: segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o PIB per capita da China foi apenas o 76º entre os mais elevados do mundo em 2022. A segunda examinou o problema maior da economia interna chinesa - a absorção dos crônicos excedentes de poupança por um surto de crescimento imobiliário insustentável, alimentado por dívidas, que está chegando ao fim. A terceira considerou as limitações impostas pela queda da população. A conclusão foi a de que essas eram dificuldades graves, mas administráveis.

Isso nos deixa frente a frente com a maior limitação de todas, que é a política. No exterior, a China tem de contornar a crescente hostilidade dos EUA e de seus aliados. Internamente, tem de administrar a transição para uma economia mais equilibrada e sustentar as relações entre o governo comunista e a economia capitalista. Esses desafios são os mais difíceis de serem enfrentados pelo gigante em ascensão. Se ele não conseguir administrá-los, poderá, no pior dos casos, acabar entrando em conflito com as democracias de alta renda e, no melhor dos casos, ser mais um país a ter caído na “armadilha da renda média”.

É difícil avaliar em que medida o ambiente externo em deterioração representará uma limitação significativa ao crescimento. Em parte porque não sabemos o quanto esse fator pode se agravar. E também porque uma parcela do que poderá acontecer não será o resultado de qualquer escolha de política pública específica dos EUA ou de outros governos, e sim de uma ansiedade mais generalizada entre as empresas externas em torno dos diversos riscos que a exposição à China poderão acarretar.

As medidas de política de comércio exterior lançadas sob o governo Donald Trump e mantidas sob Joe Biden não tiveram qualquer efeito significativo sobre o comércio exterior da China como um todo. Em 2022, o país computou significativos superávits comerciais com todas as grandes regiões econômicas, inclusive a América do Norte. Sua relação comércio sobre PIB caiu, mas ainda é elevada para uma economia tão grande. Sua participação nas exportações mundiais deixou de aumentar, mas ainda é bem mais elevada que as da União Europeia (UE) (excluindo-se o comércio interno) ou dos EUA. Não será a falta de receita de exportações que impedirá a China de comprar o que precisa.

O casamento do partido com uma economia de mercado corre o risco de solapar tanto sua legitimidade quanto seu controle. O desejo de Xi de restabelecer ambos os fatores minará inevitavelmente a grande façanha de Deng, que é o dinamismo econômico da China

A maioria dos fornecedores, além disso, ficará satisfeita em vender para o país. A exceção óbvia se deve às restrições dos EUA às exportações de semicondutores e à capacidade de produzi-los. Diz Tilly Zhang, da Gavekal: “O setor de semicondutores chinês lida com uma realidade desagradável: neste momento, as sanções coordenadas dos EUA e seus aliados barraram, de fato, seu caminho rumo à produção de chips avançados”. Mas, mais amplamente, sugere Thomas Gatley, também da Gavekal, “o principal impacto da guerra comercial e tecnológica e seus elementos correlatos, como tarifas e controles, não foi reduzir a dependência dos EUA em relação aos produtos chineses, e sim tornar as cadeias de suprimentos mais intrincadas e opacas”.

A grande interrogação, em vista disso, é se as restrições de ordem tecnológica se revelarão uma limitação vinculante ao desempenho da economia chinesa. Eu não sei responder, mas tenho minhas dúvidas quanto a isso. A população chinesa é muito inovadora e empreendedora. A grande questão é se se permitirá que essas qualidades floresçam. Haverá a possibilidade de o “comunismo capitalista” sobreviver, do ponto de vista político, e florescer, do ponto de vista econômico, ou será que o que os marxistas poderiam chamar de suas “contradições” o destruirão? Elas, na verdade, o estariam destruindo agora, sob o governo Xi Jinping, ou não?

Deng Xiaoping foi um gênio pragmático (e cruel). Ele permitiu que a economia chinesa se tornasse aberta, dinâmica e extraordinariamente livre. Sem ansiar por um controle diário, ele se contentava em delegar poder a pessoas competentes. Mas, pelo fato de não poder haver quaisquer limites ao poder discricionário do Estado-partido, conseguir que as coisas fossem feitas dependia de acordos entre autoridades e as empresas. Isso gerou muita corrupção. Xi nos disse isso. Os indicadores de governança do Banco Mundial mostram que ele tem razão. A China é bastante corrupta, pelos padrões das democracias de alta renda.

Xi, ademais, não delega poderes. Está, em vez disso, consolidando seu poder no partido e o poder do partido no país. Por seu lado (e corretamente), os objetivos e limitações se tornaram mais complexos. É impossível focar apenas em crescimento. A segurança nacional, o meio ambiente e a desigualdade, só para mencionar algumas esferas, também são importantes. Tudo isso torna a adoção de políticas públicas tarefa muito mais difícil. Especialmente, há também choques repentinos, notadamente a covid, em que uma política bem-sucedida de combate se estendeu por tempo demasiadamente longo.

Este último fator, sugere Adam Posen, do Instituto Peterson de Economia Internacional, pôs fim ao acordo “sem política, sem problemas”, pelo qual a economia funcionaria livremente desde que as pessoas permanecessem fora da política. Atualmente, no entanto, a política pública ficou menos previsível e mais invasiva. Mas isso não decorre só dos caprichos de Xi. A questão é muito mais profunda.

No final, o casamento do partido com uma economia de mercado corre o risco de solapar tanto sua legitimidade quanto seu controle. O desejo de Xi de restabelecer ambos os fatores minará inevitavelmente a grande façanha de Deng, que é o dinamismo econômico da China. E isso se tornou ainda mais problemático, agora que o ambiente externo é tão desafiador e que a economia necessita tanto de reequilíbrio e reforma.

As perguntas mais relevantes sobre o futuro econômico da China são, portanto, de ordem política. Qual será a evolução de suas relações com os EUA e de sua própria governança? Uma grande interrogação interna é se há a vontade e a capacidade para afastar a economia de sua dependência de investimentos exagerados e perdulários rumo ao aumento do consumo e ao investimento melhor. A pergunta ainda mais relevante é se a China ultrapassou o ponto no qual a relação entre o Partido Comunista e o capitalismo funciona. Se não, qual deles prevalecerá? Se, como parece provável, for o partido centralizado sob a direção de uma só pessoa, será que a economia de mercado conseguirá prosperar? (Tradução de Rachel Warszawski)

*Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times

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