Folha de S. Paulo
Conflito político é cada vez menos mediado
por alguma luz e debate informado
Conflitos sociais e econômicos acirrados
transpareceram nestes dias por meio do embate entre Congresso e Supremo; entre
trabalhadores de empresas públicas e o plano
de privatização do governo de São Paulo. Há disputa de terra, de direitos
de aborto e
de uso de droga.
Na surdina, empresas e profissionais de alta renda tentam derrubar a reforma
tributária. Querem tributação privilegiada. A primeira grande reforma
econômica que toca nos mais ricos está sendo assassinada, em prejuízo do
interesse geral.
O modo pelo qual se desenrolam tais conflitos
indica que a civilização do país é um ponto no futuro do pretérito.
Embates desse tipo não têm solução "técnica", embora técnica de fato, pesquisa e debate organizado contribuam para a melhoria de decisões e discussões —a técnica delimita o possível. As decisões, de qualquer modo, são políticas ou tomadas por meio de força bruta explícita ou disfarçada, na Justiça ou no Parlamento.
Mais direitos de aborto ou de usar drogas são
por ora posições minoritárias no eleitorado. Mas os partidos do agro, da bala,
dos evangélicos políticos e associados querem mesmo é implementar um amplo
programa fundamentalista (avesso, pois, à discussão). Querem mais do que
legitimar e reforçar um esquema repressivo de consequências sociais terríveis e
contraproducente. Isto é, mais mulheres mortas ou mutiladas; mais jovens
presos, em especial pretos e pobres, mortos ou alistados no exército de reserva
de tráfico e milícia. Nas décadas em que mais se colocou gente na cadeia, o
crime organizado se nacionalizou, se institucionalizou, enriqueceu e entrou na
política.
Não importam esse fracasso ou experiências
internacionais. A ideia é passar o trator fundamentalista: mais violência
estatal, autonomia executiva das polícias, guerra civil molecular (mais armas)
e controle da escola, censura etc. "Na lei ou na marra", como se
tentou sob Jair Bolsonaro.
Saltando para outro universo, o da
privatização. Certa esquerda a rejeita porque quer o Estado no controle de
empresas em geral. Outra acredita que a prestação de serviços públicos será
mais justa ou ampla por meio de estatais.
É notório que empresas estatais ou privadas
podem prestar serviços indecentes. Mas dar subsídios ou fazer transferências
sociais por meio de estatais é ineficiente em vários sentidos. Colocar recursos
para tanto nos orçamentos de governo é mais adequado. Com orçamentos estourados
ou no limite, dadas a destinação de gastos e a carga tributária atuais, a
questão é saber quem paga a conta: um conflito político mais claro e com
possibilidade de discussão de eficiência. Também por corporativismo,
desinformação ou passadismo, não se quer fazer esse debate fundamental.
Se o problema é a necessidade de Estado para
sanar falta de investimento privado ou avanço tecnológico, a questão é ainda
outra. Mas quem quer discutir financiamento de ciência e tecnologia, universidade?
Ou falhas de mercado ou de coordenação ou qualquer outro problema de
insuficiência ou distorção de oferta?
Há países que se desenvolveram com pesada mão
estatal. Vide o caso emblemático da França, que não é exatamente pobre, tem
nível de renda similar ao do liberal Reino Unido e condições sociais de vida
melhores. Porém, a experiência estatal brasileira do último meio século, muita
vez desastrosa e mero meio de apropriação privada de recursos sociais,
recomenda extrema cautela, para dizer o menos.
A questão, enfim, é saber por que o conflito político se reduz ao embate selvagem ou primitivo. Em parte, por não haver bastantes lideranças capazes com poder de requalificar o conflito político, de mediá-lo com alguma luz. É uma espécie de barbárie. Por quê?
Por quê?
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