terça-feira, 28 de novembro de 2023

Andrea Jubé - A ‘odisseia’ de Lula para escolher Dino e Gonet

Valor Econômico

Presidente guiou-se pela memória dos gestos de lealdade do atual titular da Justiça em todos esses anos para fazer essa opção

A “Odisseia”, o poema que narra a saga de Ulisses para regressar a Ítaca e aos braços de Penélope, pode ser interpretada também como uma ode à memória e contra o esquecimento. Em um dos cantos de Homero, Ulisses luta para resgatar companheiros perdidos para o “loto”, o “fruto doce como mel” servido pelos Lotófagos, povo pacífico, vegetariano, mas perigoso, porque atraía os incautos para a gula, e os tornava reféns em suas terras.

“Tive de os reconduzir à força, debulhados em lágrimas para as naus; arrastei-os para debaixo dos bancos dos remadores e aí os prendi, enquanto instava com os demais companheiros... a que subissem depressa nas naus ligeiras, receoso de que algum deles, provando o loto, se esquecessem do regresso”, narra o herói.

A jornada de Ulisses também é uma luta pela preservação da memória, para manter as histórias, os cânticos, as palavras que permitem aos homens lembrarem-se do passado e prepararem-se para o futuro.

Por isso podemos afirmar que a memória molda a política, e ajuda a traduzir seus atos. Como as nomeações do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, para o Supremo Tribunal Federal (STF), e do vice-procurador-geral eleitoral Paulo Gonet para a Procuradoria-Geral da República (PGR).

O leitor de memória afiada vai se recordar que os principais personagens envolvidos nessas indicações já compartilharam outros capítulos da trajetória de Lula, e ajudaram a escrever páginas de tragédia e de glória: além de Dino, os ministros do STF Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, e o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias.

Há apenas cinco dias, Lula estava reunido com estes cinco personagens em um jantar no Palácio da Alvorada. O objetivo era apaziguar os ânimos após a aprovação no Senado da controversa proposta de emenda constitucional (PEC) que restringiu o alcance de decisões individuais dos integrantes da Corte. A medida deflagrou uma crise institucional no momento em que Lula depende de ambos - Senado e STF - para aprovar os nomes de seus escolhidos.

Já era fato consumado que Lula nomearia Gonet para a PGR, em claro aceno a Gilmar e Moraes, vistos como padrinhos do candidato. Mas ainda restavam dúvidas quanto à escolha para o STF. Dino e Messias projetavam-se como favoritos, mas o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, nunca saiu de fato do páreo.

Os quase dois meses para a nomeação atestam que a prerrogativa do presidente para escolher é uma ilusão, porque, na prática, a nomeação será sempre coletiva, e deve contemplar o cenário político e os atores mais favorecidos.

Dantas sempre despontou como o preferido das principais lideranças do Senado. Lembrando que cabe aos senadores votarem e aprovarem o indicado do presidente. No PT, prevalecia o nome de Messias. Circulou a tese de que Messias era pule de dez para a vaga, porque Lula havia escolhido Gonet para a PGR. Com isso, não contemplaria mais um indicado da dupla Gilmar e Moraes.

Dino dispensaria padrinhos. Lula seria o padrinho natural pela relação de amizade e confiança de ambos de mais de uma década. Ele conquistou a admiração de Lula ao se eleger governador do Maranhão em 2014, derrotando a hegemonia do clã Sarney. Em 2015, foi um dos primeiros aliados a chamar de “golpe” o impeachment de Dilma Rousseff. Em 2018, reeleito governador, foi uma das vozes mais presentes do “Lula livre”.

Apesar desse histórico, Dino também despontou como apadrinhado por Gilmar e Moraes. Por isso, sua indicação repercutiu mal no PT e na classe política como duplo aceno ao STF, diante da escolha de Gonet.

Porém, pesou na decisão de Lula, entre outros fatores, a memória - um bem pelo qual Ulisses achou que valia a pena lutar. Ministros do STF apelaram à memória de Lula para relembrar o papel estratégico da Corte no combate aos excessos da Operação Lava-Jato, e, mais recentemente, na defesa da democracia, e na garantia para que o processo eleitoral de 2022 ocorresse, e seu resultado fosse respeitado.

Um personagem foi protagonista nas lembranças de Lula em diferentes páginas de sua biografia. Gilmar Mendes foi o relator do contundente voto que declarou a suspeição do então juiz Sergio Moro em março de 2021, e via de consequência, a nulidade dos processos contra Lula. Numa cena eloquente, Gilmar chorou ao elogiar a resiliência do então defensor de Lula, hoje ministro do STF, Cristiano Zanin.

Cinco anos antes, todavia, o mesmo Gilmar foi autor do duro voto que suspendeu a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil em 2016. A decisão amparou-se no vazamento de uma interceptação telefônica em que Dilma dizia a Lula que o subsecretário de Assuntos Jurídicos (SAJ), Jorge Messias, levaria o termo de posse ao ex-presidente. Como ela estava gripada, o áudio foi traduzido como “Bessias”.

A informação da coluna é de que, antes de tudo, Lula guiou-se pela memória dos gestos de lealdade de Dino em todos esses anos para fazer essa opção. Em paralelo, prevaleceu a memória do Gilmar que votou pela suspeição de Moro em 2021. Para esquecer o Gilmar que o suspendeu em 2016, Lula serviu-se do “loto” que arrastou os companheiros de Ulisses para o esquecimento. A memória molda a política.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário