terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Míriam Leitão - Os novos passos da Reforma Tributária

O Globo

A reforma tem defeitos, mas é uma travessia histórica. Na regulamentação podem ser reduzidos os tratamentos diferenciados

Amanhã, ao ser promulgada a Reforma Tributária, o Brasil estará dando um passo histórico. Desde a redemocratização foram muitas as tentativas de fazer a reforma dos impostos sobre consumo e nada foi adiante. Agora está aprovada o que pareceu impossível tantas vezes. No ano que vem, terão que ser travadas outras batalhas nessa mesma frente.

Primeiro, a da regulamentação, que será fundamental para saber qual é a dimensão dessa mudança, dado que ela pode perder parte dos seus méritos exatamente quando forem discutidas as leis complementares. A segunda parte da reforma será a do Imposto de Renda, que se for bem feita terá o poder de reduzir desigualdades no Brasil.

O Brasil, ao encerrar o governo militar, fez uma nova Constituição. Estava certo. Tanto estava que o Chileque não seguiu esse caminho, ainda anda em círculos no assunto. Depois, o Brasil dedicou todos os esforços para fazer a estabilização monetária. Estava certo. Tanto que a Argentina que não fez isso está nesse momento enfrentando uma espiral inflacionária sem fim à vista. Nos últimos trinta anos, o Brasil aprovou algumas reformas, nem todas boas ou suficientes, mas as tentativas de mudar os tributos sobre consumo nunca tiveram sucesso.

Desta vez, o caminho foi bem interessante. A proposta foi formulada por economistas encabeçados por Bernard Appy e entrou na agenda através do Congresso pela emenda 45 do deputado Baleia Rossi (MDB-SP). O governo Bolsonaro não quis levá-la adiante, mesmo com todo o empenho do então presidente da Câmara Rodrigo Maia.

O acerto do atual governo foi respeitar essa iniciativa do Legislativo e somar esforços. Sem o Executivo evidentemente uma mudança dessa proporção não aconteceria. Haddad assumiu dizendo que o arcabouço fiscal e a Reforma Tributária eram as prioridades, criou uma secretaria para isso entregue a Appy e entrou nessa negociação.

O Congresso introduziu modificações na proposta que, em grande parte, pioraram o texto, mas não se perdeu a essência. Hoje existem 27 legislações de ICMS, haverá uma. Por isso, quando se diz que unificou cinco impostos, na verdade é muito mais, porque o Imposto sobre Bens e Serviços passará a ser um só para os estados e o Distrito Federal. O fim da cumulatividade simplificará e tornará mais leve e lógico o pagamento de impostos no Brasil. Conseguir caminhar da origem para o destino, ainda que lentamente, será outro grande ganho.

Contudo, houve concessões demais a determinados grupos e setores que terão tratamento diferenciado. Na regulamentação é que será definido exatamente os contornos dessa vantagem, por isso é fundamental que tudo seja entendido em todos os seus detalhes. Houve derrotas claras.

Na votação da sexta-feira, a Câmara retirou a sobretaxa que incidiria sobre o comércio de armas no Brasil. Um parlamentar ligado ao governo anterior, em determinado momento, disse que o imposto seletivo incidiria sobre produtos que fazem mal à saúde, e que não seria justo, portanto, recair sobre armas. “Que mal as armas fazem à saúde?”, perguntou o parlamentar. Ora, ora. No fim, a bancada da bala venceu e as armas não entraram nesse imposto seletivo que vai recair sobre cigarros e bebidas.

A reforma tem outros defeitos. O IPI que seria extinto foi mantido para ser cobrado de produtos que concorram com os produzidos na Zona Franca de Manaus. Montadoras que produzem carros com motores à combustão terão benefícios prorrogados. Os quatro fundos criados, por razões diversas, vão exigir a transferência de um volume considerável de recursos para os estados ao longo dos próximos anos. Ainda assim os ganhos da reforma são muitos.

Ainda existe outra etapa da Reforma Tributária, além da regulamentação desta que foi aprovada. Os impostos que incidem sobre a renda também serão objeto de uma proposta de reforma e esta será a chance de aumentar a progressividade do sistema tributário brasileiro.

Há muito trabalho pela frente para alterar a forma ineficiente, complexa e injusta com a qual o Brasil recolhe dinheiro dos seus cidadãos. Mas o que foi conseguido até agora é fundamental porque cria a chance de aumentar a eficiência da economia. A reforma dos tributos sobre consumo deixa pra trás o sistema tributário criado pelo regime militar. Era um passo que precisava ser dado para atualizar o Brasil.

 

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