Folha de S. Paulo
Tiranetes estão soltos, aberração
institucional continua: 2023 teve escassa 'normalização'
O Brasil vai voltando à "normalidade
institucional" ou "democrática", lê-se em vários balanços deste
2023. No mais das vezes, esse juízo é moderado pelo gerúndio.
Ainda assim, trata-se de otimismo,
ingenuidade, tentativa de tapar o sol com a peneira ou cumplicidade com o
estágio atual do arranjo desta democracia mais pervertida do que de costume.
Está claro que deixamos de ter um presidente
golpista. Mais do que isso, o governo procura aparar as barbaridades maiores
dos anos de trevas (2019-2022) e tem um programa de garantir ou ampliar
direitos constitucionais, modesto na ambição, na criatividade política e fraco
na prática.
Difícil que vá além. O desastre social, econômico e político que herdou é enorme, há muito o que fazer. Além do mais, o bloco político do governo é o mais minoritário da redemocratização. Assim é no Congresso. Assim é por causa do tamanho do eleitorado no outro lado das trincheiras, do domínio regional do conservadorismo, do tamanho do sentimento antiesquerda etc.
Isto posto, continua essa crise democrática
que vem pelo menos de 2014-15. Faz apenas um ano que bolsonaristas tentaram
explodir o aeroporto de Brasília, gente que confabulava terrorismos diante do
Quartel-General do Exército.
Como se sabe, foi de lá também que saiu o
grosso da malta golpista que depredou as sedes dos Poderes. Essa é a evidência
anedótica da disseminação popular do programa golpista.
Outros golpismos foram esquecidos,
convenientemente. Boa parte do eleitorado o apoia, tacitamente —apenas 8% dos
eleitores de Jair
Bolsonaro em 2022 se arrependem do voto, diz o Datafolha.
Os militares coadjuvantes do projeto de
tirania de Bolsonaro saíram de fininho. O processo dos generais-comparsas mal
anda. As Forças Armadas, o Exército em particular, teriam "voltado aos
quartéis", embora nem admitam que tenham saído de lá.
Saíram, o que ficou escandaloso depois que o
general Villas Bôas afiou a baioneta nas fuças do STF em 2018,
quando os ministros tratavam de um habeas corpus para Luiz Inácio Lula da
Silva. A participação dos militares no plano de golpe e na destruição
institucional foi extensa.
Quantos irão para a cadeia? Quanto vai durar
a "volta para os quartéis"? Até 2018, havia a ilusão de que os
militares haviam se recolhido democraticamente à caserna. Na prática, está
havendo outra anistia para a baderna autoritária.
O Congresso engatilha várias represálias
contra o Supremo. Em si, não é má a ideia de empurrar os ministros do STF de
volta para os seus quarteis. A politização e as exorbitâncias do tribunal
apenas aumentaram na última década e meia, por aí.
Mas os motivos do centrão-direitão são também
outros, muito ruins: vingança contra a Justiça que condenou justamente
parlamentares e desejo de tolher atribuições constitucionais (como o julgamento
de constitucionalidade).
Na pororoca, vêm a indignação contra planos
de decisões "progressistas" (aborto, maconha, terra indígena) e
outras que limitam o uso desavergonhado de dinheirama (emendas).
O STF foi um uma fortaleza contra as
intentonas autoritárias do bolsonarismo. Era de certo modo uma guerra suja; o
Supremo bateu-se com as armas que havia, mas excepcionais, no mau sentido. De
resto, não é de agora que administra acordões e o ritmo de processos a fim de
influenciar o jogo político.
Em que pé estão os processos de Bolsonaro,
família e comparsas? Integrante plena do sistema de poder, essa gente agora tem
uma outra espécie de foro privilegiado: é julgada de acordo com as
conveniências políticas do momento, boas ou más. O tribunal morde e assopra na
medida de suas necessidades e arbítrio.
Durma-se com uma normalidade desta. E há
muito mais barulho.
Verdade.
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