segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Brasil reagiu melhor à tentativa de golpe do que os EUA, diz Levitsky

Por Caio Sartori / Valor Econômico

Autor de ‘Como as Democracias Morrem’ e ‘Como Salvar a Democracia’, professor de Harvard elogia união da política brasileira e faz críticas ao Partido Republicano

Notório analista da crise das democracias mundo afora, o cientista político americano Steven Levitsky avalia que o Brasil reagiu melhor ao 8 de janeiro do que os Estados Unidos à invasão do Capitólio, em 2021. Não só: mesmo na forma de lidar com os ímpetos autoritários de Jair Bolsonaro e Donald Trump como um todo, afirma o professor de Harvard, as elites políticas e o Judiciário brasileiros tiveram desempenho mais sólido. Os atos golpistas que resultaram na depredação dos Poderes completam um ano nesta segunda-feira.

“Depois do 8 de janeiro, os políticos do Brasil, quase sem exceções, foram muito rápidos em repudiar completamente o ataque ao Planalto e ao STF e em pedir uma investigação sobre os atos. Não procuraram achar desculpas para as causas daquilo, subestimar a seriedade ou defender os que se insurgiram”, diz em entrevista por vídeo ao Valor o autor do bestseller: “Como as Democracias Morrem” e do recém-lançado “Como Salvar a Democracia”, ambos em parceria com o colega de Harvard Daniel Ziblatt e publicados no Brasil pela Companhia das Letras.

Muitas das explicações de Levitsky sobre o porquê de a situação americana ser mais delicada giram em torno do Partido Republicano, um dos dois que de fato existem na política americana. O outro é o Democrata. Os republicanos, observa o pesquisador, encontram-se reféns de Trump, que deve ter facilidade para se consolidar mais uma vez como o candidato da sigla à Casa Branca neste ano - as primárias começam no dia 15 deste mês. A legenda não só falhou em contê-lo, como o alimentou.

“Não apenas Donald Trump, como a maioria dos líderes republicanos se recusou a aceitar de forma clara, sem ambiguidade, o resultado eleitoral [de 2020]. No Brasil, quase todos os políticos de direita, incluindo os mais importantes deles e os aliados de Bolsonaro, como o presidente da Câmara e os governadores de Minas Gerais e São Paulo, aceitaram publicamente o resultado e parabenizaram Lula”, compara. “Isso deixou Bolsonaro quase isolado, de um jeito que Trump não ficou. O Partido Republicano desempenha um papel decisivo de proteger e resgatar a carreira política de Trump.”

Trump, explica Levitsky, é a figura mais popular do partido, e qualquer republicano que tenha ambições eleitorais precisa “estar em harmonia” com ele. Uma relação de dependência muito calcada na estrutura bipartidária daquele país.

“No Brasil, como a direita é fragmentada, ou porque Bolsonaro na prática não tem um partido claro, seu destino é menos amarrado ao de outros políticos de direita, como os governadores de Minas e São Paulo, membros do Congresso”, diz. “Eles sabem que podem continuar suas carreiras políticas com ou sem Bolsonaro. Não precisam do apoio de Bolsonaro no mesmo nível que os republicanos precisam de Trump. Acho que essa é a grande diferença.”

"Democracia brasileira pode ter sido até mais ameaçada do que se imaginava”

Foi fundamental, avalia o cientista político, a forma como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu reunir os chefes dos Poderes, ministros do Supremo e governadores imediatamente após o 8 de janeiro. Trata-se de um movimento que está no cerne do que Levitsky e Ziblatt defendem nos dois livros sobre democracia: quando ela está ameaçada, a elite política precisa abraçá-la de forma “conjunta, pública e enérgica”, a despeito de diferenças ideológicas.

A política americana, pontua, foi incapaz de fazer algo semelhante. “Acho que isso se dá principalmente por causa de uma ignorância. Porque ninguém vivo nos Estados Unidos experimentou de fato ter perdido a democracia. Pode ser uma ignorância baseada na crença no excepcionalismo americano, na ideia de que a democracia americana vai sempre ser forte não importa o que aconteça.”

Talvez por ser uma democracia mais jovem, avalia ainda o professor, o Brasil tenha uma classe política mais consciente do que foi a ditadura militar. “O Partido Republicano, como escrevemos no nosso novo livro, em geral se afastou da democracia”, analisa. “Acho que existem visões distintas sobre a direita brasileira, mas ao menos em 2022 e 2023 esses políticos fizeram a coisa certa. Não posso dizer o mesmo sobre os Estados Unidos.”

Mesmo que no dia 6 de janeiro de 2021 os líderes republicanos tenham repudiado a invasão do Capitólio, com o tempo o partido foi mudando de retórica, aponta Levitsky. Passou a defender quem se engajou na revolta, a menosprezar o peso dela ou a pedir perdão aos que foram processados. Também se recusou a defender uma investigação independente e, sobretudo, a condenar Trump no Senado, o que poderia torná-lo inelegível.

“Então, uma grande e óbvia diferença entre Brasil e Estados Unidos foi que a Corte eleitoral brasileira baniu Bolsonaro de participar da política por oito anos. Isso teria acontecido nos Estados Unidos se o Senado tivesse condenado Trump”, explica. “Enquanto Trump continua uma ameaça e pode facilmente ganhar as eleições de 2024, Bolsonaro no momento é uma figura relativamente marginal na política brasileira.”

Levitsky também destaca, portanto, o papel do Judiciário brasileiro na contenção da ameaça autoritária. Não sem vaticinar que, no futuro, o país vai precisar discutir com mais afinco a intensa participação da Justiça na vida política. Em suma, pode-se argumentar que o Supremo assumiu um papel descomunal, diz ele, mas não sem ignorar que o momento o exigia.

"Intervenção militar foi um risco muito maior no Brasil do que nos EUA”

“É uma faca de dois gumes e provavelmente, nos próximos anos, os brasileiros vão ter que debater e entender formas de reduzir a influência política do Judiciário, mas no momento eu acho que a Corte fez a coisa certa”, opina. “A democracia brasileira foi ameaçada durante o período Bolsonaro e as evidências continuam a aparecer. Talvez tenha sido até mais ameaçada do que imaginávamos.”

Outra diferença nítida entre as ameaças nos dois países, segundo o autor, envolve os militares. Se no Brasil o capitão Bolsonaro esteve mais perto de receber o beneplácito de oficiais para colocar em curso uma ruptura, Trump não teve o mesmo gostinho. Ao contrário: os militares que integraram o governo dele, diz Levitsky, foram vozes críticas e deixaram claro que não compactuavam com os ímpetos autoritários.

“Em parte, as duas tentativas de golpe falharam porque precisavam que Trump e Bolsonaro tivessem o apoio dos militares. E qualquer país da América Latina sabe que não se pode dar um golpe presidencial sem o suporte deles”, aponta. “Acho que a intervenção militar foi um risco muito maior no Brasil do que nos Estados Unidos. Bolsonaro realmente pensou que poderia ter, e alguns oficiais queriam isso.”

Diferentemente de Bolsonaro, recorda Levitsky, Trump não tem trajetória militar, conta com poucos amigos fardados e falhou na compreensão de como funciona a relação deles com a política americana: “Bolsonaro avançou mais nisso porque conhece os militares, tem amigos, foi capaz de politizar as Forças Armadas ou ao menos setores delas. Ele próprio é um militar.”

Outro ponto bem sustentado nos livros de Levitsky e Ziblatt é que políticos com vocação autoritária costumam chegar ao paroxismo quando obtêm um segundo mandato. O primeiro costuma ser de testes. É por isso que o professor é pessimista quando o Valor lhe pede para prever como seria um eventual novo governo de Trump, que tem aparecido bem posicionado nas pesquisas em disputa contra o atual presidente, o democrata Joe Biden. Como exemplos de presidentes que tiveram primeiros mandatos mais discretos e solaparam a democracia quando voltaram ao poder, cita Daniel Ortega, da Nicarágua, e Victor Orbán, da Hungria.

No primeiro governo, Trump “foi muito ignorante sobre como fazer política, operar o Estado, e falhou em muita coisa porque realmente não sabia o que estava fazendo”, de acordo com Levitsky. O magnata confiou no establishment do Partido Republicano, algo que dificilmente repetirá se voltar à Casa Branca.

“Vai preencher o Estado com trumpistas absolutamente leais, pessoas que vão fazer o que ele disser para fazer. E, não sei quão bem sucedido vai ser, mas vai tentar muito mais do que na primeira vez usar o Estado e as instituições como armas contra seus rivais políticos. Para perseguir os rivais, investigar, espiar, ameaçar”, vislumbra. “É impossível saber quão bem sucedido ele seria, mas estou bem confiante de que, se eleito, vai tentar com bem mais força do que na primeira presidência.”

Sobre o governo Lula, Levitsky tece uma análise equilibrada. Elogia o presidente por ser democrata, experiente e capaz de governar um país difícil como o Brasil por meio de coalizões, além de avaliar que a economia está indo bem. É crítico, no entanto, ao abordar a política externa, matéria na qual Lula estaria “preso aos anos 1970”. Também vê poucos movimentos do líder petista para forjar novas lideranças no partido. Mas, de maneira geral, o diagnóstico do cientista político é simples: depois de anos turbulentos, o mero restabelecimento de certa normalidade configura um avanço.

“São coisas essenciais após o governo Bolsonaro. Em última instância, o governo Lula pode vir a ser bastante mediano, provavelmente não vai ter os grandes sucessos que teve de 2003 a 2010. Mas só de restabelecer um governo competente e as práticas democráticas já é um grande passo para frente”, afirma. “Nesse ponto, é bem similar a Biden.”

 

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