O Estado de S. Paulo
Infantaria do 8/1 foi composta por pessoas simples, movidas por temas de costumes que se misturavam ao medo inoculado do ‘comunismo identitarista’
Dia de sol em Brasília, Lula da Silva subia a
rampa do Palácio do Planalto junto a representantes da multiplicidade de nossa
população, como o cacique Raoni Metuktire, o menino preto e a catadora de
papéis, sendo difícil prever, nessa festa da democracia, que o palácio seria
invadido por horda fantasiada com as cores da Pátria.
Causa tristeza relembrar o vandalismo
destruidor das sedes dos Três Poderes, mas é revigorante saber ter sido a
oportunidade de reafirmação do Estado de Direito. Oito de janeiro é a data da
resiliência democrática.
Como se deram os fatos? Houve autores intelectuais, financiadores, instigadores e executores, ou seja, pessoas por detrás dos acontecimentos, e milhares na linha de frente, muitos seduzidas pelo discurso de ódio, o que não os desculpam em nada. A cada categoria foi instaurado um inquérito.
Ao longo de seu mandato, Jair Bolsonaro
lançou desconfianças no processo eleitoral, gerando a convicção de que a
vitória de Lula seria fruto de falcatrua contábil permitida pela Justiça.
Finda a eleição, começou o clamor por
intervenção federal (disfarce da intervenção militar), alimentado pela ideia de
as Forças Armadas serem poder moderador, para impedir a assunção da esquerda
terrivelmente laica e identitarista.
A permissividade do Exército na permanência
de pessoas acampadas na frente de quartéis, agitando bandeiras, rezando e
concitando transeuntes a resistir à posse de Lula, levava à impressão de que a
agitação contava com o apoio da força militar.
Em 12 de dezembro de 2022, dia da diplomação
de Lula, foi deflagrado movimento que incendiou carros e ônibus, tentando-se
invadir a sede da Polícia Federal em Brasília. O grupo era composto, na
maioria, pelos acampados em barracas em frente ao Exército, onde havia
banheiros químicos e alimentação fornecidos por empresários. Coronel do
Exército impediu que fosse cumprida pela Polícia Militar (PM) a ordem de
desmantelar o acampamento intervencionista em Brasília, sob o argumento de a
frente do quartel ser área militar.
Na véspera do Natal, Alan Diego dos Santos
Rodrigues e George Washington de Oliveira Sousa, empresário financiador,
tentaram fazer caminhão explodir no Aeroporto de Brasília. George Washington
foi preso dia 24, e confessou ter participado dos atos violentos de 12 de
dezembro, quando policiais militares lhe contaram que não reprimiriam o
vandalismo, dando a entender estarem do lado de Bolsonaro, sendo em breve
“decretada a intervenção” (veja-se em portal brasil61.com de 25/12/2022). No
acampamento em frente ao Exército foram urdidas as diversas investidas contra a
democracia: as de 12 e 24 de dezembro e a de 8 de janeiro.
As imagens dos PMs indiferentes ao avanço da
multidão no dia 8 de janeiro bem revelam, também, o comprometimento da
Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal na tentativa do golpe de
Estado.
Vistos os autores mediatos, cumpre
identificar o tipo de pessoa que compôs em 8 de janeiro a infantaria que
caminhou em direção às sedes dos Três Poderes. Nessa caminhada havia uma mínima
organização, pois os invasores se dividiram, indo um grupo para cada sede, como
primeiro passo para a entrada das Forças Armadas e o resgate da liberdade.
Como retrato dessa infantaria, pode-se tomar
por exemplo a Ação Penal 1.067 do Supremo Tribunal Federal (STF), na qual uma
invasora foi condenada a largas penas por tentativa de golpe de Estado e
abolição violenta do Estado Democrático.
Os réus são pessoas de classe média baixa,
sem trajetória política, mobilizadas pela internet: Raquel, cozinheira; Felipe,
nutricionista; Cibele, professora aposentada; Charles, pedreiro; Orlando,
desempregado; Gilberto, corretor de seguros; Fernando, psicólogo; Fernando,
operador de caixa de supermercado.
O que em síntese disseram em interrogatório?
Explicaram: eram contra o aborto, a legalização das drogas e o banheiro único
para crianças, mas dotados de especial intenção, derrubar o governo empossado.
É suficiente lembrar as palavras da ré Cibele, a professora aposentada: “O
objetivo era apenas ocupar os prédios, sentar e esperar até vir uma intervenção
militar para não deixar Lula governar”.
Como se vê, a infantaria era composta por
pessoas simples, movidas por temas relativos a costumes – aborto, drogas,
banheiro único, família – que se misturavam ao medo inoculado do “comunismo
identitarista”, que valoriza identidades particulares: raça, orientação sexual.
Assim, a internet viabiliza a reunião de
desconhecidos, e professora, cozinheira, pedreiro e psicólogo se irmanam sob a
ilusão de serem a linha de frente que abre caminho para a sagrada intervenção.
Se os “perigos” disseminados acerca do governo Lula foram desfeitos com o
sucesso econômico e respeito à liberdade, perdura em alguns, no entanto, o
temor à diversidade, dando azo à mobilizadora pauta conservadora. A
diversidade, para muitos, traz insegurança, vide formas de conduta alternativas
no campo dos costumes ganharem reconhecimento.
A democracia exige superar o populismo
internético preconceituoso com o diferente e respeitar os direitos de cada um
por sua qualidade de cidadão, seja diferente ou não. •
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Excelente! A pauta conservadora de Bolsonaro (e do pseudofilósofo Denis Rosenfield) e as mentiras bolsonaristas sobre as eleições contagiaram os golpistas (autoproclamados PATRIOTAS, na verdade PATRIOTÁRIOS) a tentar derrubar o governo Lula, DEMOCRATICAMENTE ELEITO!
ResponderExcluirEm 9/10, o filósofo bolsonarista, na coluna intitulada por ele "Golpe?", fez uma meticulosa análise DESCARTANDO que tenha havido tentativa de golpe em 8/1. Segundo ele, "O que houve no 8 de Janeiro foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com seus fiéis ainda acreditando numa narrativa ‘revolucionária’ evanescente". Ou seja, não houve apoio militar e nem participação deste setor, nem tentativa articulada dos bolsonaristas, nem cumplicidade das forças militares e de segurança com os golpistas, enfim, foi quase um dia normal. Novamente, o pseudofilósofo demonstrou sua total despreocupação com a verdade, e mostrou sua usual TENDENCIOSIDADE de prestigiar/defender militares, conservadores e outros membros e interesses da Direita ou do Conservadorismo, que o levou a APOIAR BOLSONARO na eleição de 2018.
ResponderExcluirhttps://gilvanmelo.blogspot.com/2023/10/denis-lerrer-rosenfield-golpe.html#more
Muito bom o artigo.
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