sábado, 6 de janeiro de 2024

Pablo Ortellado - Chamando as coisas pelo nome

O Globo

Lembrar o 8 de janeiro é especialmente importante diante do revisionismo torpe

Na próxima segunda-feira comemoraremos o primeiro aniversário dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. A data precisa entrar no calendário cívico brasileiro, como parte de nossa memória democrática, da mesma maneira como nos lembramos com pesar do 31 de março de 1964.

Lembrar o 8 de janeiro é especialmente importante diante do revisionismo torpe que quer fazer parecer que houve apenas uma manifestação pacífica de cidadãos, sem liderança e sem armas. De acordo com essa leitura mentirosa, o vandalismo foi cometido por petistas infiltrados, estimulados pela negligência das forças de segurança.

É bem possível que inocentes úteis tenham participado da marcha até a sede dos três Poderes, e é certo que autoridades não responderam ao ataque de maneira responsável. Mas nada disso deveria nos desviar dos fatos, muito bem documentados.

A invasão das sedes dos três Poderes não foi um fato isolado. Fez parte de uma sequência de eventos entre os dias 30 de outubro de 2022 e 9 de janeiro de 2023 que — pela abrangência no tempo, pela dispersão no território e pela sincronia — exigiu planejamento, coordenação e financiamento, envolvendo milhares de pessoas numa tentativa de golpe de Estado.

As ações coordenadas começaram logo depois da divulgação do resultado das eleições na noite de 30 de outubro, com os bloqueios de rodovias por caminhoneiros. Entre 30 de outubro e 9 de novembro foram registrados 804 bloqueios totais ou parciais de rodovias, com forte concentração no Sul e no Sudeste.

Uma segunda onda de bloqueios tomou o país na segunda quinzena de novembro, com ênfase em Mato Grosso, e o uso de táticas de guerrilha e terrorismo, como levantamento de barricadas, incêndio de pontes e bombas caseiras. No dia 19 de novembro, um posto da concessionária que administra a BR-163 foi atacado a tiros, e um caminhão e uma ambulância incendiados. No dia 21, três carretas que furaram um bloqueio na BR-163 em Mato Grosso também foram incendiadas.

Enquanto os bloqueios de rodovias seguiam, foram convocados atos em frente aos quartéis no dia 2 de novembro em dezenas de cidades. Alguns manifestantes permaneceram em frente às guarnições militares e iniciaram os acampamentos que pediam “intervenção federal” e o cancelamento do resultado das eleições. No dia 19 de dezembro, um boletim da inteligência do Exército estimava 43 mil pessoas acampadas em frente a quartéis.

Entre os dias 6 e 9 de novembro, comboios com centenas de caminhões vindos de Mato Grosso, Bahia, Goiás e Paraná se dirigiram a Brasília tentando reproduzir o bloqueio da Esplanada dos Ministérios de setembro de 2021. No dia 15 de novembro, 100 mil pessoas se reuniram em frente ao QG do Exército em Brasília pedindo intervenção das Forças Armadas.

No dia 12 de dezembro, centenas de militantes protestaram em Brasília contra a prisão do cacique Serere, um bolsonarista radical acusado de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Esses militantes invadiram a sede da Polícia Federal, atacaram uma delegacia, bloquearam vias com botijões de gás, depredaram lojas, incendiaram oito veículos e tentaram derrubar um ônibus em chamas de um viaduto.

No dia 24 de dezembro, véspera do Natal, militantes colocaram um explosivo num caminhão-tanque carregado com 60 mil litros de querosene de aviação. A ideia era explodir o veículo no aeroporto de Brasília, o que causaria centenas de mortes. Por sorte, o detonador falhou.

No dia 8 de janeiro, enquanto 4 mil militantes invadiam e depredavam as sedes dos três Poderes em Brasília, outros bloquearam o acesso a refinarias de petróleo em Araucária (PR), São José dos Campos (SP), Barueri (SP), Manaus (AM), Canoas (RS) e Betim (MG). Na noite de 8 de janeiro, rodovias foram bloqueadas em Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e São Paulo. No dia 9 de janeiro, 11 torres de transmissão de energia foram atacadas e três delas derrubadas, duas em Rondônia e uma no Paraná.

A Justiça pode ter se excedido na repressão — acho que se excedeu —, e a cobertura da imprensa pode às vezes ter tratado o radicalismo antidemocrático de alguns milhares como se caracterizasse os milhões de eleitores de Bolsonaro. Mas nenhum desses erros autoriza o erro muito mais grave de menosprezar o que aconteceu.

Não precisamos da minuta do golpe ou dos fatos narrados na delação de Mauro Cid. Se essa atordoante sequência de pedidos de intervenção militar, bloqueios de rodovias, incêndios de veículos, explosões, bloqueios de refinarias, derrubadas de torres de transmissão de energia, invasão e depredação das sedes de Poderes da República não configura uma tentativa de golpe de Estado com o uso de táticas de terrorismo, é porque o fanatismo está deixando as pessoas cegas, e elas não conseguem mais reconhecer as coisas pelo nome.

 

3 comentários:

  1. PERFEITO! A ideia de que em 8/1 "houve apenas uma manifestação pacífica de cidadãos [transtornados], sem liderança e sem armas", foi apresentada pelo filósofo bolsonarista Denis Rosenfield em sua coluna há algumas semanas, inclusive neste blog. Nesta coluna de hoje, aqui, temos a completa réplica àquela tendenciosa coluna do pseudofilósofo inimigo da verdade.

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  2. Em 9/10, o filósofo bolsonarista, na coluna intitulada por ele "Golpe?", fez uma meticulosa análise DESCARTANDO que tenha havido tentativa de golpe em 8/1. Segundo ele, "O que houve no 8 de Janeiro foi uma espécie de estertor do bolsonarismo, com seus fiéis ainda acreditando numa narrativa ‘revolucionária’ evanescente". Ou seja, não houve apoio militar e nem participação deste setor, nem tentativa articulada dos bolsonaristas, nem cumplicidade das forças militares e de segurança com os golpistas, enfim, foi quase um dia normal. Novamente, o pseudofilósofo demonstrou sua total despreocupação com a verdade, e mostrou sua usual TENDENCIOSIDADE de prestigiar/defender militares, conservadores e outros membros e interesses da Direita ou do Conservadorismo, que o levou a APOIAR BOLSONARO na eleição de 2018.
    https://gilvanmelo.blogspot.com/2023/10/denis-lerrer-rosenfield-golpe.html#more

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