quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Renata Gil* - ‘Habemus Supremum’

O Globo

Supremo Tribunal Federal se encarregou bem de seu papel de proteção ao Estado Democrático de Direito

A expressão Habemus Papam, que traduz o anúncio público da escolha de um novo Papa, admite uso coloquial e tem perfeito cabimento quando expressa a ocupação de um espaço institucional em momentos de incerteza e insegurança política e jurídica.

No último ano, assistimos com preocupação à crise democrática que se instalou em Israel antes do conflito bélico na Faixa de Gaza, em razão de atos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para impedir que o Supremo daquele país avaliasse atos do Executivo. Fez isso por meio do Parlamento, por ele controlado, usando leis de caráter eminentemente antidemocrático.

Em julho, em pleno recesso forense brasileiro, conversei com ministros do nosso Supremo Tribunal Federal, pensando em ato de apoio ao Supremo israelense, conduzido por uma mulher, a magistrada Esther Hayut.

Na sessão do dia 23 de fevereiro, o ministro Dias Toffoli foi enfático em registrar que esteve com a presidente e que “ela já falava das dificuldades e dos ataques que eles estavam sofrendo, assim como nós aqui”, completou, afirmando que “ataques à Suprema Corte não são ‘privilégio’ brasileiro”.

A tendência de controlar as Supremas Cortes já foi evidenciada em vários países que tentaram promover reformas constitucionais, como Israel e Angola, ou destituíram membros da Corte, como se deu em El SalvadorVenezuela e Polônia. A razão está no caráter estruturante que as Cortes Constitucionais desempenham nas democracias.

Mas as tentativas de destruição do Estado Democrático não passam de arroubo autoritário de poucos incapazes de enxergar o mundo contemporâneo, que tem caminhos de institucionalidade bem definidos, traçados há anos.

Interpretando as lições de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em sua nova obra, “Como salvar a democracia”, o Brasil vai bem porque tem instituições sólidas; porque sua Constituição é a salvaguarda de direitos fundamentais, ao passo que contempla o sistema de maiorias democráticas (mesmo com multipartidarismo); o Parlamento é forte; e o Judiciário é independente. Neste último caso, muito em razão das prerrogativas constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade (artigo 95 da Constituição).

Por aqui, o Supremo Tribunal Federal se encarregou bem de seu papel de proteção ao Estado Democrático de Direito, seja pela prática dos atos judiciais a que foi instado, seja pela capacidade de diálogo relevante com os poderes constituídos, com as Forças Armadas.

Em Israel, a ministra Esther Hayut, ex-chefe do Judiciário, se despediu da Suprema Corte dando um exemplo belíssimo de autoridade e do compromisso de cumprir as leis do seu país, ao capitanear a votação que impediu as normas que reduziam as atuações do sistema de Justiça em defesa da democracia de prevalecer sobre as orientações que devem nortear os mandatários do poder. Por 8 votos a 7, em apertadíssima maioria, venceu a possibilidade de aplicação do critério da razoabilidade, regra importante e bem usada ao longo dos anos pelo Judiciário, extirpada por lei, para impedir excessos odiosos do Executivo ou de autoridades.

Os protestos nas ruas e a participação do povo israelense nesse debate fortaleceram a atuação da Suprema Corte. Tanto a atuação da Corte como a da população em apoio ao Judiciário nos servem bem em meio aos atos de memória de um ano do fatídico 8 de Janeiro. Onde há Supremo com independência funcional, há garantia de ordem constitucional, de democracia e de cidadania. No Brasil, nós temos Supremo.

*Renata Gil, juíza criminal, é a primeira mulher eleita presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e integrante nomeada para o Conselho Nacional de Justiça


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