quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Zeina Latif - Somos melhores do que se pensa

O Globo

A crença de que o país precisa de mais democracia, e não menos, para se tornar mais justo e próspero é de grande valor

Os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 não produziram instabilidade democrática e tampouco contaram com o apoio da sociedade. Uma ampla maioria os reprovou, mesmo entre os eleitores de Bolsonaro. Há muito a celebrar, portanto, especialmente considerando que 72% da população mundial vive em autocracias, segundo o V-Dem.

O Brasil conta com freios e contrapesos que afastam o risco de rupturas democráticas. A tentativa de golpe, porém, não fracassou apenas porque inexiste intenção golpista na cúpula militar ou porque as instituições agiram prontamente para punir os envolvidos.

Um importante antídoto é a própria rejeição da sociedade a retrocessos; um ingrediente fundamental para o bom funcionamento das válvulas da democracia – o que certamente faltou em 1964.

Segundo pesquisa DataFolha recente, 74% dos brasileiros acreditam que a democracia é sempre a melhor forma de governo. É possível que o apoio efetivo seja ainda maior, já que parte dos entrevistados talvez não saiba suficientemente o que é democracia. Entre os que estudaram até o fundamental, apenas 61% a apoiam.

Vale ainda lembrar que a cassação dos direitos políticos de Jair Bolsonaro não motivou mobilizações de rua.

Ministros do STF exaltam o papel da instituição como defensora da democracia. Foi assim no discurso da presidente na cerimônia de abertura de ano do Poder Judiciário em 2023. A ex-ministra Rosa Weber afirmou que o espírito da democracia jamais será subvertido “porque o sentimento de respeito pela ordem democrática continua e continuará a iluminar as mentes e os corações dos juízes desta Corte Suprema”.

Não obstante o importante papel do Supremo e sua reação coesa aos ataques golpistas, como apontam Felipe Recondo e Luiz Weber, essa visão dos ministros não tem apelo na sociedade. O que há é uma grande desconfiança em relação ao Supremo.

Pesquisa Genial/Quaest de novembro apontou que apenas 17% aprovam a instituição. O 8 de janeiro não só não melhorou a aprovação do STF, como houve protestos por conta da morte de Cleriston Pereira da Cunha, preso após os atos golpistas.

A desconfiança não é gratuita. No mundo jurídico, há muitos questionamentos às decisões da Corte. Mesmo entre seus defensores há um reconhecimento de excessos. Oscar Vilhena Vieira, Rubens Glezer e Ana Laura Barbosa avaliam que o STF reagiu de forma cada vez mais contundente aos ataques de Bolsonaro e de seus apoiadores ao Estado democrático de direito, adotando “posições polêmicas e pouco ortodoxas”. Foi o caso do inquérito das “fake news” instaurado em março de 2019.

Na verdade, o desconforto social com as falhas no funcionamento das instituições democráticas é amplo. Não à toa houve apoio às manifestações do 8 de janeiro, mas sem invasão de prédios públicos. Segundo pesquisa do PoderData de janeiro de 2023, 58% dos entrevistados as aprovaram.

A cifra sobe para 67% entre os grupos mais favorecidos, com ensino médio e com ensino superior; justamente aqueles que lotam as ruas nos protestos.

Por esse aspecto, a politização da cerimônia de um ano do 8 de janeiro, de lado a lado, foi um equívoco. Ela não traz dividendos aos políticos engajados; essa foi uma lição dos muitos protestos – nem mesmo a paralisação do 7 de setembro em 2021 fortaleceu a aprovação em baixa de Bolsonaro.

Pior, acaba por alimentar a cisão da sociedade, o que dificulta ainda mais o enfrentamento dos problemas que causam o desconforto social. Celebrar a democracia, sim; politizar o tema, não.

Equívocos à parte, o fato é que o anseio da sociedade pelo fortalecimento da democracia é bom sinal. Em um país marcado por tantas crises econômicas e injustiças sociais – elementos que podem nutrir o sentimento antidemocrático –, a crença de que o país precisa de mais democracia, e não menos, para se tornar mais justo e próspero é de grande valor.

O Brasil é considerado uma democracia eleitoral, mais limitada em relação ao observado em nações desenvolvidas. Os maiores problemas apontados pelo V-Dem são a falta de igualdade na participação política e a baixa capacidade do processo deliberativo de afastar políticas populistas ou que contrariam a coletividade. Não faltam iniciativas do Legislativo e do Executivo que favorecem grupos organizados, em detrimento dos demais.

Há um longo caminho adiante. Que nossas lideranças reajam à altura.

 

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