quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Assis Moreira* - Países em desenvolvimento sem ‘pouso suave’

Valor Econômico

Cicatrizes da pandemia só se aprofundaram para o grupo de economias em desenvolvimento, alerta agência da ONU

As economias desenvolvidas se preparam para uma “aterrissagem suave” (soft landing) em 2024, mas países em desenvolvimento não estão fora de perigo ainda. A constatação é do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), enquanto os ministros de finanças e de presidentes de bancos centrais do G20 terminam hoje em São Paulo reunião que examina a situação global.

A publicação dessa agência da ONU focada em desenvolvimento internacional confirma a importância da agenda do Brasil para sua presidência do G20, ancorada na relação entre desigualdade e políticas econômicas, cooperação para desenvolvimento sustentável, modelos de tributação progressiva e aliviar realmente a dívida de países em desenvolvimento.

No geral, a avaliação de organizações internacionais neste começo de ano tem sido de que a economia global provavelmente evitará uma nova recessão, à medida que os bancos centrais controlam a inflação, que agora pode ficar em 5,8% neste ano, abaixo do pico de 8,7% em 2022.

A expectativa é que países desenvolvidos, principalmente os EUA, comecem a cortar as taxas de juros até a metade do ano, o que se reflete na flexibilização das condições de crédito internacional nos últimos meses. As estimativas para o crescimento da economia global variam entre 2,4% e 3,1% neste ano. Para o médio prazo, a expansão mundial continuará baixa ou moderada, em meio a persistentes riscos, incluindo proliferação e intensificação de conflitos, fragmentação comercial e geopolítica, perturbações no mercado de commodities, desaceleração econômica na China e alto endividamento e estresse financeiro.

O Pnud constata que, de seu lado, os países desenvolvidos, como grupo, estão a caminho de “apagar” completamente as cicatrizes deixadas pela covid-19 e já quase alcançaram sua trajetória de crescimento pré-pandemia. Ao mesmo tempo, as cicatrizes só se aprofundaram para o grupo de economias em desenvolvimento. Lembra alerta do Banco Mundial sobre o aprofundamento da divergência econômica entre as nações em desenvolvimento com fundamentos relativamente sólidos e os países com fortes vulnerabilidades em meio a dívidas e custos de financiamento elevados.

Ou seja, enquanto as economias desenvolvidas e emergentes fortes podem ter conseguido uma aterrissagem suave, muitos países em desenvolvimento parecem “estar atolados na lama”.

De 59 economias em desenvolvimento examinadas, 32 tem notas de crédito classificadas abaixo do grau de “não investimento”. Pelo menos 36 estão classificadas como em risco ou em alto risco de endividamento.

Particularmente preocupante é que o serviço da dívida pública externa do grupo atingirá um pico de US$ 175 bilhões neste ano - aumento de mais de 50% em relação a 2022 -, dos quais US$ 126 bilhões são pagamentos de principal e 54% do total devido aos credores oficiais. Entre 22 dos países mais pobres, o pagamento do serviço da dívida representará mais de 20% de sua receita.

A queda das taxas de juros nos últimos meses ajudou a restabelecer o acesso ao mercado para alguns países em desenvolvimento que estavam excluídos dos mercados desde a covid. Mas um número significativo de países ainda não tem acesso e, para os mais vulneráveis que conseguem refinanciar, a nova dívida tem preço alto. Exemplifica que o rendimento do índice de títulos soberanos em dólares da África pela S&P é de cerca de 10%, ainda mais de quatro pontos percentuais acima que antes da pandemia.

Sem surpresa, o serviço da dívida continua assim a travar despesas com desenvolvimento. O Pnud estima que países de baixa renda gastam 2,3 vezes mais em média com o pagamento de juros do que com assistência social para sua população, 1,4 vez mais que com gastos domésticos com saúde ou 60% do que destinam para educação. Também não há recursos para mitigação de mudanças climáticas. Na última década, os pagamentos de juros consumiram uma parcela cada vez maior da receita do governo. No total, 48 países abrigam 3,3 bilhões de pessoas cujas vidas são diretamente afetadas pelo subinvestimento em educação ou saúde por causa dos altos pagamentos de juros, pelos cálculos da agência da ONU.

Muitos governos arrecadam uma pequena parcela do PIB como receita e, além de o nível ser muito baixo, ele também caiu na última década, diz o Pnud. Países em desenvolvimento de baixa renda arrecadaram apenas 14,9% do PIB em receita governamental em 2023, comparado a 15,9% dez anos antes. No mesmo período, a dívida pública aumentou 17,4%.

Mesmo que muitos riscos na economia global não se concretizem, várias economias em desenvolvimento continuarão presas ao ciclo negativo de dívida-desenvolvimento que as impedem de realizar novos investimentos para o crescimento e o bem-estar. Isso num cenário em que a desigualdade diminuiu entre os países, mas aumentou dentro deles, com efeitos explosivos.

O Pnud constata que em 2023 houve um aumento notável nos protestos em todo o mundo, com novas manifestações em 83 países. A confiança continua a diminuir nas instituições públicas em todo o mundo. A confiança nos governos é especialmente frágil. Há ambiente de deterioração da democracia em todo o mundo, que está minando os contratos sociais entre os governos e a população. Mais de 70 eleições em 2024 colocarão à prova o engajamento político e a confiança nos sistemas democráticos.

É nesse cenário que a presidência brasileira do G20 busca um mínimo de engajamento coletivo concreto, apesar do enorme racha geopolítico.

*Assis Moreira é correspondente em Genebra

 

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