O Globo
Um fato novo, irreversível, precisa entrar na
cabeça dos namoradores: “não” quer dizer “não”. Espero que entendam, pois tudo
ficará mais fácil
Escrever para manhã de carnaval é
algo de responsabilidade. Se houver um fato muito grave, tratarei dele na TV,
guardando este espaço para a festa. Na suposição de certa normalidade, falo
também de minhas lembranças, algumas delas enigmas de carnaval. Uma delas é
esta canção: “Ai morena/seria meu maior prazer/passar o carnaval contigo/beijar
a tua boca/e depois morrer”.
Não entendi bem esse romantismo trágico. Verdade é que, com o tempo, percebi que “beijar a tua boca” talvez fosse alusão a quatro noites de um exuberante amor. Ainda assim, jamais consegui analisar com clareza essa disposição para a morte, sabendo que há tantos carnavais pela frente.
Na semana passada, li uma nota sobre os
moradores de Pinheiros, em São Paulo, que reclamam do carnaval, muita gente,
sujeira na rua. Isso acontece também em alguns pontos de Ipanema, mas aqui
talvez haja mais resignação. São apenas alguns dias, e o carnaval, conforme
demonstrou também Roberto DaMatta, é um momento de esquecimento de regras.
Na verdade, o medo que os moradores de
bairros de classe média sentem dessas festas é algo que me lembra também a
reação de alguns viajantes europeus no século XIX. Assustavam-se com o cheiro
de comida, suor e tantas outras secreções humanas.
Quando estudei brevemente antropologia, um
dos livros que nos davam para ler era “Purity and danger”, escrito por Mary
Douglas. Um clássico publicado em 1966. Creio que as ideias de Douglas
fortalecem ainda mais a análise de DaMatta em seu “Carnavais, malandros e
heróis”. Ela mostra como as pessoas se sentem inseguras diante de certa
desorganização e sujeira e como isso simboliza uma quebra de ordem.
Longe de mim defender que sujem as ruas e
façam xixi por toda parte. Mas é inevitável que haja muitos ambulantes vendendo
comida e bebida e que esses milhares de foliões movidos a cerveja não encontrem
espaço para suas líquidas necessidades.
Trabalho normalmente no carnaval e aproveito
a calma das tardes para uma leitura pesada. Estou fora, limito-me a filmar o
desfile do bloco Loucura Suburbana, no Instituto Nise da Silveira, no Engenho
de Dentro. Cumpro esse ritual há alguns anos e vejo com alegria que muitos
outros doentes mentais fazem também seus desfiles. Em breve, seremos o único
carnaval do mundo que tem uma programação de desfiles desse gênero. Muitos
assim chamados malucos e seus acompanhantes podem vir ao Rio apenas para esse
circuito.
Mesmo tendo me retirado do carnaval,
contribuo à minha maneira para sua ampliação para almas que também precisam
desses instantes de alegria e prazer. Campanhas contra pipi na rua, roubo de
celulares, que nesta época desaparecem em massa, assim como preocupações
especiais, como a epidemia de dengue, tudo isso tem meu apoio discreto.
Sei lá, pode ser que no futuro a tecnologia
invente o pipi eletrônico, que você faça num pen drive e descarregue quando
chegar em casa. O único desejo é que os amantes passem o carnaval juntos,
beijem na boca, apesar dos alertas sobre sapinhos, mas não morram no final. Há
dezenas de maneiras de aproveitar esses dias e noites, de acordo com a
disposição de cada um ao longo da vida.
Que os moradores de Pinheiros e Ipanema
aguentem o tranco, pois, como dizia o poeta que é nome de uma de nossas ruas: a
gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho, para tudo se acabar na
quarta-feira. Inclusive o barulho.
Recomendação final: confete, serpentina, até
um pouco de lança-perfume sempre estiveram presentes numa festa que é também
uma oportunidade de acasalamento. Mas um fato novo, irreversível, precisa
entrar na cabeça dos namoradores: “não” quer dizer “não”. Espero que entendam,
pois tudo ficará mais fácil.
Eu não quero...
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