quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Roberto DaMatta - O mal-estar da globalização

O Globo

Todo conflito desvenda exclusivismos que não podem ser tomados como modelos absolutos

Quando se trata de guerra — de violência e fúria que fulminam pessoas e formas de vida —, todo comentário é discutível e potencialmente ofensivo. Feita a primeira vítima, fica difícil chegar à última.

Nas razões convocadas pela guerra, quando ela emerge como um sujeito — uma instituição com direitos tão profundos quanto justos e desumanos do agredido ou do agressor —, o conflito armado tem enorme vigor. Isso porque ele chama a promessa de finalização de uma injúria ou etapa histórica. Quem não se lembra daquela guerra que acabaria com todas as guerras?

Se o mundo fica melhor sem judeus, muçulmanos, católicos, puritanos, materialistas, índios... — eu esgotaria um volume com exemplos —, então há o remédio de tomar Jerusalém, exterminar subversivos e catequizar índios e todos os que não são como nós. Se não admitimos o outro como alternativa e classificamos as alternativas como erros, ignorância, pecado, primitivismo, doença ou deformação, legitimamos seu extermínio porque, nesse caso, o aniquilamento é cura, livramento e progresso. Algo, valha-me Deus, que está na base de todo etnocentrismo e dos anacronismos.

Todo conflito desvenda exclusivismos que não podem ser tomados como modelos absolutos. Ao equiparar a reação de Israel ao que o povo judeu sofreu, Lula fez mais do que cometer um engano. Tocou num tabu. O tabu do “povo eleito” sujeito justamente por ser, como anotou a antropóloga Mary Douglas, o “Cordeiro de Deus”, vítima de todas as infâmias. Como ela desvenda, há uma dialética apurada entre pureza e perigo.

Nada é mais dilacerante do que o terrorismo, que na área da comunicação surge como uma diarreia de fake news e lembra a bruxaria dos povos tidos como primitivos. O terror é uma pavorosa metáfora das desmedidas diferenças de riqueza e poder entre povos. Num sentido preciso, o terror é uma expressão extremada do “poder dos fracos”, um tipo de força dos que perderam até mesmo seu espaço de vida, como é o caso das duas guerras que testemunhamos e estão na base do mal-estar globalizado.

O mal-estar atual é mais atroz do que o freudiano. Para Freud, a questão era o embate dos instintos contra o etos civilizatório; ao passo que o nosso resulta do ajustamento entre uma consciência global (que demanda igualdade) e a perspectiva das nações imperiais.

O paradigma pejorativo do “West and the rest” mudou porque o “West” corre o risco de também pertencer a esse “resto” condenado à marginalidade. O global torna mais difícil manter hierarquias geopolíticas. Nosso mal-estar não diz respeito somente a rivalidades entre nações, religiões, línguas e culturas. Hoje, tem como foco uma referência implacável: a Terra.

Um planeta que, se o estilo de vida dos países hegemônicos for globalizado, pode se exaurir ou — mais apavorante que isso — explodir num conflito nuclear deflagrado por algum Doutor Fantástico que já deixou o cinema.

Violência gera violência que só pode ser mitigada pelo bom senso capaz de deter os drones que matam pelo computador sem nenhuma piedade. Antigamente existiam “campos de batalha”. Nos antigos tempos modernos, essas zonas eram as fronteiras entre países que passavam de vizinhos e parceiros a inimigos. As trocas de bens, serviços e palavras realizadas entre fronteiras são substituídas pelos fuzis dos soldados. A Guerra de 1914-18 teve esse perfil e, embora brutal, nela ainda havia um elemento de cruel humanidade, porque os inimigos se enxergavam e viam suas bravuras e temores.

Hoje, estamos perdidos pelo excesso de comunicação e pelos diabólicos poderes da tecnologia aplicada a ganhar poder e dinheiro. Desse tanto falar sem escutar que, já advertia Lévi-Strauss, faz perna com a intriga, o terrorismo e o golpe. Do mesmo modo que o esquecer denuncia a ausência de diálogo consigo mesmo.

 

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