O Globo
Todo conflito desvenda exclusivismos que não
podem ser tomados como modelos absolutos
Quando se trata de guerra — de violência e
fúria que fulminam pessoas e formas de vida —, todo comentário é discutível e
potencialmente ofensivo. Feita a primeira vítima, fica difícil chegar à última.
Nas razões convocadas pela guerra, quando ela
emerge como um sujeito — uma instituição com direitos tão profundos quanto
justos e desumanos do agredido ou do agressor —, o conflito armado tem enorme
vigor. Isso porque ele chama a promessa de finalização de uma injúria ou etapa
histórica. Quem não se lembra daquela guerra que acabaria com todas as guerras?
Se o mundo fica melhor sem judeus, muçulmanos, católicos, puritanos, materialistas, índios... — eu esgotaria um volume com exemplos —, então há o remédio de tomar Jerusalém, exterminar subversivos e catequizar índios e todos os que não são como nós. Se não admitimos o outro como alternativa e classificamos as alternativas como erros, ignorância, pecado, primitivismo, doença ou deformação, legitimamos seu extermínio porque, nesse caso, o aniquilamento é cura, livramento e progresso. Algo, valha-me Deus, que está na base de todo etnocentrismo e dos anacronismos.
Todo conflito desvenda exclusivismos que não
podem ser tomados como modelos absolutos. Ao equiparar a reação de Israel ao
que o povo judeu sofreu, Lula fez
mais do que cometer um engano. Tocou num tabu. O tabu do “povo eleito” sujeito
justamente por ser, como anotou a antropóloga Mary Douglas, o “Cordeiro de
Deus”, vítima de todas as infâmias. Como ela desvenda, há uma dialética apurada
entre pureza e perigo.
Nada é mais dilacerante do que o terrorismo,
que na área da comunicação surge como uma diarreia de fake news e lembra a
bruxaria dos povos tidos como primitivos. O terror é uma pavorosa metáfora das
desmedidas diferenças de riqueza e poder entre povos. Num sentido preciso, o
terror é uma expressão extremada do “poder dos fracos”, um tipo de força dos
que perderam até mesmo seu espaço de vida, como é o caso das duas guerras que
testemunhamos e estão na base do mal-estar globalizado.
O mal-estar atual é mais atroz do que o
freudiano. Para Freud, a questão era o embate dos instintos contra o etos
civilizatório; ao passo que o nosso resulta do ajustamento entre uma
consciência global (que demanda igualdade) e a perspectiva das nações imperiais.
O paradigma pejorativo do “West and the rest”
mudou porque o “West” corre o risco de também pertencer a esse “resto”
condenado à marginalidade. O global torna mais difícil manter hierarquias
geopolíticas. Nosso mal-estar não diz respeito somente a rivalidades entre
nações, religiões, línguas e culturas. Hoje, tem como foco uma referência
implacável: a Terra.
Um planeta que, se o estilo de vida dos
países hegemônicos for globalizado, pode se exaurir ou — mais apavorante que
isso — explodir num conflito nuclear deflagrado por algum Doutor Fantástico que
já deixou o cinema.
Violência gera violência que só pode ser
mitigada pelo bom senso capaz de deter os drones que matam pelo computador sem
nenhuma piedade. Antigamente existiam “campos de batalha”. Nos antigos tempos
modernos, essas zonas eram as fronteiras entre países que passavam de vizinhos
e parceiros a inimigos. As trocas de bens, serviços e palavras realizadas entre
fronteiras são substituídas pelos fuzis dos soldados. A Guerra de 1914-18 teve
esse perfil e, embora brutal, nela ainda havia um elemento de cruel humanidade,
porque os inimigos se enxergavam e viam suas bravuras e temores.
Hoje, estamos perdidos pelo excesso de
comunicação e pelos diabólicos poderes da tecnologia aplicada a ganhar poder e
dinheiro. Desse tanto falar sem escutar que, já advertia Lévi-Strauss, faz
perna com a intriga, o terrorismo e o golpe. Do mesmo modo que o esquecer
denuncia a ausência de diálogo consigo mesmo.
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