CartaCapital
As propostas de mudança no sistema eleitoral
atendem mais aos políticos do que aos eleitores
Recente levantamento da CNN Brasil mostra
que, desde a aprovação da reeleição para as chefias do Executivo, ao menos 57
propostas de emenda constitucional para acabar com o instituto foram
apresentadas. Não obstante, ele continua aí. Também tem sido frequente que
presidenciáveis de oposição se manifestem contra a proposta. Os que se
elegeram, contudo, logo abandonam a ideia. Foi assim com Lula em 2002 e Bolsonaro em 2018.
Idem o governador gaúcho, Eduardo Leite,
que se manifestara contra a reeleição antes de se tornar chefe de governo no
Rio Grande do Sul e acabou optando por disputar um segundo mandato – e
conseguiu. Agora, Leite volta a defender o fim do instituto ao lado de seus
colegas presidenciáveis do Consórcio Sul-Sudeste, Romeu Zema e Ratinho Júnior. Ambos,
aliás, reeleitos para o governo de seus estados.
Desta feita, a proposta de extinguir o instituto ganha impulso adicional, pois tem sido defendida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que tem poder de agenda no processo legislativo congressual. O senador colocou-a como pauta prioritária da casa que preside para este ano, aproveitando o embalo da discussão de um novo código eleitoral, relatado pelo colega Marcelo Castro. E ela se faz acompanhar de outra velha ideia muitas vezes brandida por integrantes de nossa classe política, mas nunca aprovada: a de unificar todas as eleições num único pleito.
Pense-se no que esta segunda proposta
representará, se concretizada: o eleitorado terá de decidir de uma única vez
como votar para sete cargos: vereador, prefeito, deputado estadual, governador,
deputado federal, senador e presidente da República. Como a cada duas eleições
são eleitos dois senadores, nesses pleitos o número de escolhas sobe para oito.
Em tal situação, para votar o eleitorado precisará considerar questões que vão
desde buracos nas ruas até as relações do Mercosul com a China, desde as vagas nas
creches municipais até a taxa de juros arbitrada pelo Banco Central, desde os
problemas mais comezinhos da vida citadina até as mais amplas questões das
relações internacionais. Qual a qualidade do debate político em tal contexto?
Como acompanhar simultaneamente, com um mínimo de compreensão, os debates para
prefeito, governador e presidente, sem falar nos cargos legislativos? Qual a
qualidade da democracia com eleições ocorrendo nesse cipoal de temas e cargos?
Duas justificativas costumam ser apresentadas
para defender tal proposta. Uma, que isto representaria uma economia, outra,
que o País não funciona tendo de fazer eleições a cada dois anos, porque tudo
para. Será mesmo? Será que outras democracias, inclusive as mais consolidadas
mundo afora, realizam menos eleições e, por isso, são mais felizes e bem
geridas? Não é o que a experiência internacional mostra.
A ideia de estender os mandatos e unificar as
eleições tende a piorar o processo de escolha
Tome-se o exemplo da Alemanha, referência
quando se trata de estabilidade política e qualidade da gestão pública. Entre
2000 e 2023, os alemães votaram todos os anos. Isso mesmo: houve eleição ano
sim, ano também. Não consta que isso tenha prejudicado as políticas de governo,
atrasado o desenvolvimento econômico ou prejudicado o controle das contas
públicas. Como o Brasil, a Alemanha é um país federativo e os temas
especificamente estaduais, municipais e nacionais, se tratados em eleições
próprias, propiciam um debate eleitoral mais inteligível e bem informado,
conduzindo assim a melhores decisões eleitorais.
A ideia de que unificar as eleições melhora a
qualidade do governo e da democracia baseia-se apenas numa suposição abstrata,
sem respaldo na experiência internacional. E ela vem acompanhada de outra
péssima ideia: aumentar o tempo dos mandatos, o que reduz o controle do eleitor
sobre seus representantes. No caso do Senado, a proposta chega a ser indecente:
subir para dez anos o mandato na Câmara Alta. Noutras democracias, como Estados
Unidos e França, os mandatos são mais curtos que os nossos, não mais longos.
Aliás, nos EUA também se realizam eleições para o Congresso a cada dois anos e
na França o Senado é parcialmente renovado a cada triênio. Isso, sem contar as
muitas eleições municipais, de condados etc. que se dão no meio desse
calendário.
Alega-se por aqui que quatro anos é pouco
para implementar um plano de governo e, portanto, subir para cinco ajudaria. Ao
mesmo tempo, diz-se que oito anos é tempo demais. Ora, o sistema hoje
existente, de um mandato de quatro anos com direito à reeleição, produz um
mecanismo bastante eficiente. Depois de testado por um quadriênio, ao disputar
a reeleição o governante é, na prática, submetido a um referendo sobre sua
continuidade. Se bem avaliado pelo eleitorado, é reconduzido ao cargo, tendo
assim mais tempo para levar adiante suas propostas. Se o oposto ocorrer, é
substituído com alguma rapidez. Não é razoável? Não dá ao eleitorado mais
opções em vez de menos? Cinco anos não seria tempo demais para um governante
ruim? Por que não o reconduzir, se bem avaliado?
Reconhecer os méritos da reeleição e de
disputas bianuais, que permitam a continuidade de bons governos e o tratamento
mais cuidadoso de certos temas, de modo algum significa supor que
aperfeiçoamentos não sejam possíveis e desejáveis. Mas os nossos representantes
parecem menos preocupados em melhorar o sistema do que em atender às suas
conveniências. Ora, para que se submeter ao crivo do eleitorado a cada quatro
anos, se esse tempo pode ser esticado? Para que aguardar na fila que um
governante bem avaliado termine seu segundo mandato, se é possível colocar seu
cargo à disposição para disputa desde já? Para que dar ao eleitorado condições
de discutir com mais cuidado os temas de seu interesse na eleição, se é
possível produzir uma maçaroca ininteligível de discussões, sem que nada possa
ser efetivamente digerido pelos cidadãos?
Estamos novamente diante de possíveis
mudanças que fazem mais sentido para a proteção dos interesses corporativos
internos da classe política do que do aprimoramento de nossa democracia. •
*Cientista político, professor da FGV-EAESP e
criador do podcast “Fora da política não há salvação”.
Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024
Excepcional e claríssimo! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
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