sábado, 9 de março de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Keynes, filósofo moral

CartaCapital

Ele insistia na direção inteligente, pela sociedade, dos mecanismos profundos que movem os negócios

Peço licença (ou desculpas) aos leitores de nossa ­CartaCapital: vou reapresentar uma de minhas obsessões prediletas. Diante da soberba “científica” de alguns economistas, arrisco minha reputação para celebrar os escritos de um filósofo moral que embrenhou sua sabedoria nos áridos territórios da Economia.

No artigo de 1930, “As Possibilidades Econômicas dos Nossos Netos”, Keynes projeta a vida social que pode nascer do avanço tecnológico e da rápida acumulação produtiva. O capitalismo, diz ele, criou as condições para a superação das limitações impostas milenarmente à satisfação das necessidades básicas dos indivíduos. Criou, mas não entregou.

Nesse texto perturbador para o ethos da sociedade aprisionada nas engrenagens da concorrência, Keynes escreve: “Devemos abandonar os falsos princípios morais que nos conduziram nos últimos dois séculos. Eles colocaram as características humanas mais desagradáveis na posição das mais elevadas virtudes. Não há nenhum país, nenhum povo que possa vislumbrar a era do tempo livre e da abundância sem um calafrio… Pois, fomos educados para o esforço aquisitivo e não para fruir… Se avaliarmos o comportamento e as realizações das classes abastadas de hoje, as perspectivas são deprimentes… Os que dispõem de rendimentos diferenciados, mas não têm deveres ou laços, falharam, em sua maioria, de forma desastrosa no encaminhamento dos problemas que lhes foram apresentados”.

Entre minhas modestas tentativas de desvendar os valores que orientaram os trabalhos do maior economista do século XX, sublinhei o peculiar humanismo de Keynes. Ele professava a crença de que a sociedade e o indivíduo são produtos da tradição e da história. Cultivava os valores de uma moral comunitária, radicalmente antivitoriana e, portanto, visceralmente antiutilitarista.

Isso não quer dizer que recusasse as virtudes criativas da modernidade capitalista nascida sob a consigna do avanço das liberdades e da autonomia do indivíduo. O “amor ao dinheiro”, dizia, é o sentimento que move o indivíduo na economia mercantil-capitalista. Fator de progresso e de mudança social, the love of ­money pode transformar-se em um tormento para o homem moderno. A sanha competitiva não avalia os custos da refrega, “mas olha apenas para seus resultados finais, assumidos como permanentes”.

No seu célebre artigo “O Fim do ­Laissez-faire”, Maynard ironizou a ideia de que a busca do interesse privado levaria necessariamente ao bem-estar coletivo. “Não é uma dedução correta dos princípios da teoria econômica afirmar que o egoísmo esclarecido leva sempre ao interesse público. Nem é verdade que o autointeresse é, em geral, esclarecido.”

Keynes cultivava os valores de uma moral comunitária, antivitoriana e antiutilitarista

Os efeitos negativos do darwinismo social devem ser neutralizados mediante a ação jurídica e política do Estado e, sobretudo, pela atuação de “corpos coletivos intermediários”; como, por exemplo, um Banco Central dedicado à gestão consciente da moeda e do crédito. ­Keynes acreditava que a cura para os males do capitalismo deve “ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante produção de dados e informações”. Ele insistia na “direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados”, particularmente as decisões sobre a posse da riqueza marcadas pelo conflito entre o investimento criador de riqueza nova – leia-se emprego, rendimentos e lucros para trabalhadores e empresários – e a acumulação de valores fictícios, estéreis, para a comunidade. No último capítulo de sua obra maior intitulado Notas Finais Sobre a Filosofia Social a Que Pode Levar a Teoria Geral, Keynes constrói a síntese entre a sua filosofia moral e a crítica à “teoria clássica” empreendida ao longo do livro. Ele propõe um conjunto de políticas apoiadas nas concepções já sugeridas no artigo de 1933, “The Means to Prosperity”: “O problema econômico é uma questão de economia política, isto é, da combinação entre teoria econômica e a arte da gestão estatal”.

O primeiro ponto desse arranjo de política econômica é a “socialização do investimento”, entendida como a coordenação pelo Estado das relações entre o investimento público e privado. O “orçamento de capital” do governo deve ser administrado de modo a minorar as incertezas que contaminam o investimento privado. “Creio que uma socialização bastante completa do investimento será o único meio de se aproximar do pleno emprego, ainda que isso não exclua qualquer forma de cooperação entre a autoridade pública e a iniciativa privada.”

O segundo pilar da proposta keynesiana cuida da eutanásia do rentier. A política bancária e de crédito deve ser administrada para neutralizar “o poder de opressão acumulativo do capitalista para explorar o valor de escassez do capital … enquanto sejam intrínsecas as razões para a escassez da terra, isso não é verdade para a escassez de capital”.

O terceiro ponto reclama um sistema fiscal que mantenha permanentemente a capacidade de redistribuir renda­ dos mais abonados para as classes menos favorecidas, com o objetivo de manter o consumo crescendo à mesma velocidade da expansão da renda.

O quarto ponto. Já na Teoria Geral, Keynes clamava por uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários, como forma de evitar os desatinos competitivos de “empobrecer o vizinho”. Isto significava facilitar o crédito aos países deficitários e punir os países superavitários. O propósito era evitar os “ajustamentos deflacionários” e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Mais tarde, em Bretton Woods, Keynes propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos Bancos Centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os Bancos Centrais. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”. 

*Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

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