sábado, 16 de março de 2024

João Gabriel de Lima* - O check-up das democracias

O Globo

A má notícia do relatório do V-Dem é que a maior parte da população do mundo ainda vive sob regimes autoritários

A medicina preventiva recomenda que se faça um check-up anual para aferir indicadores básicos de saúde, como colesterol, glicemia e funções cardíacas. Os institutos que medem a qualidade da democracia divulgam seus relatórios também com periodicidade anual. A metodologia é análoga, baseada numa série de indicadores. Pode-se dizer que é um check-up dos regimes de liberdade.

Entre os relatórios, o mais acurado e mais citado em teses acadêmicas é do instituto sueco V-Dem, divulgado no início do mês. Democracias, em sua definição mais concisa, são regimes em que prevalece a vontade da maioria, por meio de eleições, ao mesmo tempo que protegem os direitos de todos os cidadãos, incluídas as minorias. Estes são, respectivamente, os aspectos “democrático” e “liberal” das democracias. Aos dois vetores básicos o V-Dem acrescenta cerca de 500 indicadores — que incluem participação popular e capacidade de resolver os problemas concretos dos cidadãos — e faz sua classificação.

A má notícia do relatório é que a maior parte da população do mundo ainda vive sob regimes autoritários — entre outros motivos, porque os dois países mais populosos do planeta, Índia e China, situam-se nas categorias inferiores do V-Dem. A China é uma ditadura explícita, e a Índia é classificada como “autocracia eleitoral” — um país onde há eleições, mas os direitos liberais não são respeitados. Na Índia, minorias são perseguidas, e jornalistas podem ser presos por criticar o governo.

A boa notícia é que pelo menos numa região — a América Latina — os índices melhoraram. Isso se deve principalmente ao bom desempenho de dois países: Brasil e Bolívia. Esta viveu uma profunda autocratização durante o governo de Evo Morales, chegando a perder o status de nação democrática. Recuperou-o recentemente e vem reconstituindo, aos poucos, seu regime de liberdade. O Brasil não deixou de ser uma democracia, mas esteve entre os países que mais perderam pontos no V-Dem durante o governo de Jair Bolsonaro. Desde as eleições de 2022, no entanto, o país experimenta forte recuperação.

Pelo tamanho, população e peso regional, o Brasil mereceu um capítulo de destaque do relatório, em que o V-Dem aponta virtudes da nossa democracia. Entre elas estão a união de setores da sociedade civil, à esquerda e à direita, em torno de princípios democráticos; a independência do Judiciário; e a capacidade de articular uma aliança internacional para endossar a vitória do novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, quando o mandatário anterior se recusava a reconhecer o resultado de eleições livres e justas. Se a deterioração de uma democracia fosse uma doença detectável pelo check-up do V-Dem, o caso brasileiro sinalizaria um protocolo possível de cura.

O histórico dos relatórios mostra que existem outras alternativas de “medicina preventiva”. Se um presidente que piora a qualidade da democracia perde o posto, as notas do V-Dem se recuperam rapidamente — a melhora do Equador após a saída de Rafael Correa foi documentada em artigos acadêmicos. Se o autocrata é reeleito, ao contrário, a democracia pode se deteriorar até um ponto de quase não retorno. O caso clássico é Viktor Orbán, que destruiu a democracia húngara e se transformou em modelo perverso para a extrema direita no mundo inteiro.

Podem-se usar os critérios do V-Dem para analisar democracias em várias épocas. Um estudo do cientista político Fernando Bizzarro comparou três períodos democráticos brasileiros: a República Velha, o período entre as ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares (1946-1964) e a Nova República, que começou em 1985. Ele conclui que, a cada era democrática, o Brasil apresenta índices superiores aos da era anterior. Temos, assim, razões para otimismo — desde que saibamos monitorar os sinais revelados pelo check-up e aplicar os remédios que nós próprios desenvolvemos.

*João Gabriel de Lima é jornalista e integrante do Observatório da Qualidade da Democracia da Universidade de Lisboa

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