O Globo
A má notícia do relatório do V-Dem é que a
maior parte da população do mundo ainda vive sob regimes autoritários
A medicina preventiva recomenda que se faça
um check-up anual para aferir indicadores básicos de saúde, como colesterol,
glicemia e funções cardíacas. Os institutos que medem a qualidade da democracia
divulgam seus relatórios também com periodicidade anual. A metodologia é
análoga, baseada numa série de indicadores. Pode-se dizer que é um check-up dos
regimes de liberdade.
Entre os relatórios, o mais acurado e mais citado em teses acadêmicas é do instituto sueco V-Dem, divulgado no início do mês. Democracias, em sua definição mais concisa, são regimes em que prevalece a vontade da maioria, por meio de eleições, ao mesmo tempo que protegem os direitos de todos os cidadãos, incluídas as minorias. Estes são, respectivamente, os aspectos “democrático” e “liberal” das democracias. Aos dois vetores básicos o V-Dem acrescenta cerca de 500 indicadores — que incluem participação popular e capacidade de resolver os problemas concretos dos cidadãos — e faz sua classificação.
A má notícia do relatório é que a maior parte
da população do mundo ainda vive sob regimes autoritários — entre outros
motivos, porque os dois países mais populosos do planeta, Índia e China, situam-se nas
categorias inferiores do V-Dem. A China é uma ditadura explícita, e a Índia é
classificada como “autocracia eleitoral” — um país onde há eleições, mas os
direitos liberais não são respeitados. Na Índia, minorias são perseguidas, e
jornalistas podem ser presos por criticar o governo.
A boa notícia é que pelo menos numa região —
a América Latina — os índices melhoraram. Isso se deve principalmente ao bom
desempenho de dois países: Brasil e Bolívia. Esta viveu
uma profunda autocratização durante o governo de Evo Morales,
chegando a perder o status de nação democrática. Recuperou-o recentemente e vem
reconstituindo, aos poucos, seu regime de liberdade. O Brasil não deixou de ser
uma democracia, mas esteve entre os países que mais perderam pontos no V-Dem
durante o governo de Jair Bolsonaro. Desde as eleições de 2022, no entanto, o
país experimenta forte recuperação.
Pelo tamanho, população e peso regional, o
Brasil mereceu um capítulo de destaque do relatório, em que o V-Dem aponta
virtudes da nossa democracia. Entre elas estão a união de setores da sociedade
civil, à esquerda e à direita, em torno de princípios democráticos; a
independência do Judiciário; e a capacidade de articular uma aliança
internacional para endossar a vitória do novo presidente, Luiz Inácio Lula da
Silva, quando o mandatário anterior se recusava a reconhecer o resultado de
eleições livres e justas. Se a deterioração de uma democracia fosse uma doença
detectável pelo check-up do V-Dem, o caso brasileiro sinalizaria um protocolo
possível de cura.
O histórico dos relatórios mostra que existem
outras alternativas de “medicina preventiva”. Se um presidente que piora a
qualidade da democracia perde o posto, as notas do V-Dem se recuperam
rapidamente — a melhora do Equador após a
saída de Rafael Correa foi documentada em artigos acadêmicos. Se o autocrata é
reeleito, ao contrário, a democracia pode se deteriorar até um ponto de quase
não retorno. O caso clássico é Viktor Orbán, que destruiu a democracia húngara
e se transformou em modelo perverso para a extrema direita no mundo inteiro.
Podem-se usar os critérios do V-Dem para
analisar democracias em várias épocas. Um estudo do cientista político Fernando
Bizzarro comparou três períodos democráticos brasileiros: a República Velha, o
período entre as ditaduras de Getúlio
Vargas e dos militares (1946-1964) e a Nova República, que começou em
1985. Ele conclui que, a cada era democrática, o Brasil apresenta índices
superiores aos da era anterior. Temos, assim, razões para otimismo — desde que
saibamos monitorar os sinais revelados pelo check-up e aplicar os remédios que
nós próprios desenvolvemos.
*João Gabriel de Lima é jornalista e integrante do Observatório da Qualidade da Democracia da Universidade de Lisboa
Um comentário:
Muito bom o artigo.
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