segunda-feira, 11 de março de 2024

Miguel de Almeida - Mãos ao alto

O Globo

Rio e São Paulo, duas metrópoles acossadas pela violência e pelo crack

Com aquela habitual esperteza de sindicalista de resultados, Lula da Silva busca transformar as eleições municipais numa espécie de terceiro turno. Bolsonaro, fraquejado atrás das orações de Michelle, agradece. Para Rio e São Paulo, duas metrópoles acossadas pela violência e pelo crack, com muitas franjas sob o domínio de diferentes franquias criminosas, o banal lero-lero de ambos não dá camisa a ninguém. Dos dois extremos, por trás de uma verborragia de frases feitas, sobressaem descaso e despreparo diante de uma realidade áspera e cada vez mais desumana.

Atormentado com o miasma da cana dura, e ouvindo vozes, Bolsonaro ainda não produziu, em nenhuma das duas cidades, um candidato do seu coração desfibrado. Alexandre Ramagem, no Rio, corre desesperadamente da cela, para não ser obrigado a dividir a escova de dente com o chefe; Ricardo Salles, em São Paulo, debateu-se histericamente como um afogado — e morreu no pasto. De seu lado da moeda, Lula preferiu praticar maldades e humilhou Marta Suplicy com o convite para ser vice de Guilherme Boulos, do PSOL. A ex-prefeita engoliu a seco as acusações de corrupção antes dirigidas ao PT e, tal a metamorfose ambulante copiada a Lula, mandou uma banana à coerência e à militância. Logo ofereceu uma refeição ao companheiro de chapa.

A esta altura, o prezado leitor poderia me perguntar: o que tais senhores e senhoras (desculpe a gasta deferência), sem ser a reza, propõem de fato às nossas cidades? Com a sinceridade aprendida na arquibancada, responderia: não sei. Mas, infelizmente, não carregaria qualquer arrependimento com a confessada ignorância. Pela banal razão de que nenhum deles, a palo seco, sabe o que fazer para melhorar a qualidade do asfalto ou elevar ao estágio humano os motoqueiros de aplicativos — acho que ouvi vindo do PT a proposta de arrancar de todos eles uma… contribuição sindical!

Estamos sós.

A história do comunismo de um lado e de outro a extrema direita desde criancinha, toda essa bobajada, mais seus altíssimos impostos, apenas deixam a população com as mãos para o alto. Antes metrópoles referenciais, como faróis de uma modernidade e de uma alegria contagiantes, Rio e São Paulo agora esvanecem — e à sociedade é dado escolher… entre esquerda ou extrema direita! Como se apenas semelhante simplicidade anêmica trouxesse soluções para a quantidade de mendigos nas ruas. Acho que ouvi vindo do PT a ideia de isenção de impostos aos carros populares — socorro! Outro idoso foi atropelado na calçada, esburacada e estreita, por uma bicicleta elétrica.

Em tempos diversos, várias cidades já enfrentaram decadência, estiveram sob a ameaça do crime e de governantes ociosos — e não foi apenas Gotham City. Algumas se salvaram; muitas outras, na verdade a maioria delas, feneceram. Seria útil a leitura do fenomenal “Metrópole — A história das cidades, a maior invenção humana”, de Ben Wilson, recém-lançado no Brasil. Ali surgem o esplendor e glória de ícones como Bagdá (onde surgiu a primeira fábrica de papel do mundo), Alexandria (com seu acervo da sabedoria antiga) e Atenas (com as escolas de filosofia). Primeiro como centros de inteligência e criatividade, mas depois entregues ao acaso e ao esquecimento sob reiteradas políticas causadoras de esvaziamento e abandono. Na Idade Média, lembra o autor, 19 das 20 maiores cidades eram muçulmanas ou integravam o império chinês. Apenas Constantinopla, hoje Istambul, escapava de tal perfil. Era católica.

Roma, a primeira cidade a alcançar 1 milhão de habitantes na História humana, para depois minguar até 100 mil almas, experimentou a decadência e então o renascimento. Nem todas tiveram a mesma sorte. Londres (basta ler Dickens) e Nova York (está em “Taxi driver”) já viveram o caos urbano e o descontrole da criminalidade. Superaram e hoje enfrentam outros problemas, agora trazidos pela riqueza e pelo mimetismo, como congestionamentos ou alto custo de vida.

Em meados do século XVIII, o Rio Tâmisa, em Londres, transformara-se num esgoto a céu aberto. Porque a sociedade cobrou, foi recuperado nas últimas décadas. Não chega a ser potável, mas crianças nadam em suas águas sem mais doenças. Nas cidades brasileiras, mesmo as menores, normalizou-se o roubo de celulares. Como também a falta de creches ou as mortes por enchentes no Rio ou São Paulo — socorro! Acho que não ouvi nenhuma solução vinda de lá ou de cá.

Estamos sós.

 

3 comentários:

  1. Há muito que não vejo uma crônica tão bem feita, sabiamente crítica, de humor áspero e ferino, como deve ser.
    Chegou a lembrar-me Nelson Rodrigues, rapidamente.
    Pena que dolorida, e dolorosa, verdadeiramente!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Excelente texto! Mas o colunista erra num ponto: Ricardo Salles não morreu no pasto. Ele ainda segue pastando e tentando passar o restante da sua boiada! Ele tem que ser levado prum confinamento de segurança máxima, já que não podemos usá-lo pra alimentar os morcegos hematófagos (ele iria intoxicá-los).

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